terça-feira, 9 de outubro de 2012


 O segundo “adelantado”, D. Alvar Nuñes Cabeza de Vaca


Cabeza de Vaca (1490-1560)
            Cabeza de Vaca chegou a Assunção em 1542 e aí recebeu o governo das mãos de Irala. Vinha da Espanha, desembarcara na ilha de Santa Catarina, onde permaneceria por mais de 6 meses, e decidira ir até Assunção pelo continente para ali assumir o governo, reproduzindo assim a proeza de Aleixo Garcia.

            Iniciou a viagem com 250 homens em 26 cavalos e com os indígenas que decidiram  acompanhá-lo, enviando o restante de sua expedição a Buenos Aires pelo mar (sem saber que ela tinha sido despovoada em 1540 47). No tempo que passou na ilha, em convivência com os índios, teve oportunidade de informar-se bem sobre a região e também sobre a jornada de Aleixo Garcia, inclusive com os companheiros náufragos deste, ou  seus descendentes, que ali viviam.           
                                  
            Na sequência, apresento – pela sua importância como fonte de informação a respeito do território paranaense na primeira metade do século XVI --  uma síntese da viagem de Cabeza de Vaca e sua gente por esse território, tal como foi relatada no livro redigido pelo seu secretário Pedro Hernández, intitulado “Comentários”, publicado em Sevilha em 1555.  Usarei, nas citações, a edição brasileira da L&PM já referida.                                                             
            Cabeza de Vaca partiu de Cádiz em 2 de novembro de 1540. Quando chegou a Cananéia, no litoral paulista, “tomou posse deste local em nome de Sua Majestade” (espanhola) (p. 150) (na época, discutia-se ainda o ponto exato por onde passava o meridiano de Tordesilhas: para os portugueses era Laguna, para os espanhóis, Iguape- cf p.314, nota). Tomou posse também de São Francisco 48 e da ilha de Santa Catarina, onde desembarca em 29 de março de 1541 (p. 151). Contactou ali os índios carijó, “do grupo étnico tupi-guarani”, presentes no litoral brasileiro, de Cananéia ao norte do Rio Grande do Sul  (p.314- nota). Nessa ilha, além da morte de Juan de Ayolas (a quem estaria subordinado, se ainda vivesse), Cabeza de Vaca é informado que Domingo de Irala governava em Assunção, “situada na ribeira do rio Paraguai, 120 léguas abaixo do porto de Candelária e distando 350 léguas do povoado e porto de Buenos Aires, que está assentado no rio Paraná, onde estavam até sessenta cristãos. A maior parte da gente espanhola que estava naquela província vivia em Ascensión” (p.153) (é assim que nos “Comentários” consta o  nome da capital desse Paraguai gigante).

            Cabeza de Vaca, na ilha de Santa Catarina, decide ir por terra até Assunção, como já foi dito. Envia seus navios para Buenos Aires (três naus e uma caravela, cf p.148).   Manda “o      feitor Pedro Dorantes para descobrir caminho por terra firme, na qual os índios nativos já haviam matado muita gente do rei de Portugal desde que a descobriram” (p.155) (deduz-se daí que os espanhóis já reconheciam a anterioridade dos portugueses em “descobrir” o território hoje paranaense. Cabeza de Vaca refere-se aqui, segundo a nota da p.315, à expedição de Pero Lobo, de 80 homens, enviada por Martim Afonso de Souza em 1531, que partiu de Cananéia, “seguindo o curso do rio Ribeira, e depois tomou a direção oeste, no mesmo rumo da jornada épica realizada por Aleixo Garcia, em 1524.”  Essa  expedição, de 40 arcabuzeiros e 40 besteiros,  foi dizimada pelos índios). Pedro Dorantes, que partiu com alguns espanhóis e índios, retorna depois de três meses e meio, com informações sobre o caminho para Assunção.

            Cabeza de Vaca inicia a viagem entrando (de navio) pelo rio Itapucuno litoral norte de Santa Catarina, próximo a Barra Velha” (cf. nota da p.315), em 18 de outubro de 1541 (p.156). Deixa na ilha de Santa Catarina 140 pessoas, para que fossem pelo mar até Buenos Aires. Envia a nau de volta à ilha de Santa Catarina e segue seu caminho, com 26 cavalos, acompanhado por 250 arcabuzeiros e balisteiros, dois frades e muitos índios que decidiram acompanhá-los (p.157).

            A expedição atravessa as montanhas e bosques da Serra do Mar e chega aos  Campos Gerais (chamados apenas de “Campo”), “que é onde começa a terra povoada” (p.155), quer dizer, povoada de índios. No “Campo” estavam as primeiras povoações que encontraram pelo caminho. Chegam a três povoados de índios, situados muito próximos um do outro.  “Quando esses índios souberam de sua chegada saíram para recebê-los, carregados com  muitos mantimentos e muito alegres, demonstrando muito prazer com a sua vinda” (p.157).  Esse é um fato mencionado frequentemente nos “Comentários”: toda a vez que Cabeza de Vaca e acompanhantes chegam a um povoado, os índios, a fim de demonstrar que eles são bem vindos, trazem-lhes “mantimentos”, os quais sempre Cabeza de Vaca faz questão de pagar com objetos de interesse deles, objetos de metal como  tesouras, facas, anzóis etc (p.160).  A narrativa esclarece quem são esses índios amistosos: 
 
Esses índios pertencem à tribo dos guaranis; são lavradores que semeiam o milho e a mandioca duas vezes por ano, criam galinhas e patos da mesma maneira que nós na Espanha, possuem  muitos papagaios, ocupam uma grande  extensão de terra e falam uma só língua.(...)  É gente muito amiga, mas também muito guerreira e vingativa. O governador tomou posse dessas terras em nome de  Sua Majestade como terras novamente descobertas e deu à província o nome de Vera. (p.157-158)

            Isso ocorre em 29 de novembro de 1541.

            A expedição segue em frente e chega em 1º de dezembro a um rio “que os índios chamam de Iguaçu, que quer dizer água grande” (p.158). Segundo a nota da p.316, Cabeza de Vaca e seus homens atingem aquí “o curso superior do Iguaçu, na região de Tindiquera, atual Araucária” (grifo meu). Em 3 de dezembro chegam ao rio Tibagi, nas proximidades da atual cidade de Ponta Grossa (p.316- nota).  Nesse mesmo dia  aproximam-se de um outro povoado de índios. Trata-se, segundo nota da p.316, do grande aldeamento de Abapany, “por onde cruzava o caminho transcontinental 'Peabiru' (...), que unia a costa do Brasil meridional com os Andes” (em Abapany, atual Castro, “outro caminho vindo da foz do rio Itapocu encontrava-se com o Peabiru, rumo ao oeste” 49). Nessa altura da viagem um índio já convertido procura Cabeza de Vaca e lhe dá notícias de como estão as coisas em Assunção, para onde ele retornará, servindo-lhe de guia. Cabeza de Vaca, por isso, dispensa os índios que vieram com ele, desde a ilha de Santa Catarina  (p.159). Os índios que a expedição acaba de encontrar tinham grande medo de cavalos, que não conheciam (p.160). Na sequência, chegam a outro povoado de índios guarani, onde são bem recebidos pelo “principal”, que lhes traz mel, patos, galinhas, milho, farinha etc (p.160).
 
            No dia 7 de dezembro chegam a um rio que os índios chamavam então Taquari, em cujas margens estava assentado um povoado de índios. A nota da p.316 informa que se trata do rio Ivaí, “que De Vaca transpôs acima do Salto de Ubá”. No dia 14 encontram outro povoado guarani, onde também são bem recebidos. “Aí descansaram um dia para se recuperarem da fadiga/.../ Por todo caminho que se andou depois, viram-se muitas povoações, sendo terra muito alegre, de muitas campinas, muitas árvores, muitos rios e arroios de água muito cristalina, toda a terra muito própria para lavrar e criar.” (p.161)
  
            Cabeza de Vaca segue até o dia 19 de dezembro sem encontrar nenhum outro povoado, passando muitas dificuldades para avançar, com os cavalos e mantimentos (face à existência de rios e mata fechada).  No dia 19 chegam a um povoado de índios guarani, “que vieram recebê-los muito contentes”, trazendo mantimentos como os já citados, incluindo agora “farinha de pinheiro, que produzem em grande quantidade, porque há pinheiros tão grandes por ali que quatro homens com os braços estendidos não conseguem abraçar um. /.../ Por aquelas terras há muitos porcos montanheses e macacos que comem aqueles pinhões. /.../ Também há muitas frutas, de diversas qualidades, que dão duas vezes ao ano”.  (p.162-163).  Nota da p. 316 esclarece que esses “porcos montanheses” são na realidade pecaris (também chamados de caititus ou catetos). 

            Cabeza de Vaca e sua gente passam o Natal de 1541 no povoado indígena de Tugui (p.163). De acordo com nota da p. 316, ele ficava nas nascentes do rio Cantu. “A tropa de Cabeza de Vaca, após cruzar o Ivaí, venceu com grandes dificuldades a escarpa do planalto paranaense pelo vale do rio Pedra Preta”. Deixam Tugui em 28 de dezembro. Caminham todo esse dia até chegarem a um rio muito caudaloso e largo, com muitas árvores nas margens (segundo nota da p.316, trata-se do alto Piquiri). Depois de atravessarem esse rio, o que lhes deu muito trabalho, passam por cinco povoados de índios guarani, onde foram bem recebidos, como nas ocasiões  anteriores.

            Do dia 1º de janeiro de 1542 ao dia 5 não encontraram povoado algum. Passaram fome nesse período. Alimentavam-se dos gusanos encontrados nas taquaras que eram fritos (segundo o dicionário Aurélio, gusano é um molusco de aspecto vermiforme). No dia 6 dormem na margem de outro rio muito caudaloso (identificado em nota da p. 316 como rio Cobre). No dia seguinte seguem por terra boa, de muita caça (apanham “porcos montanheses” e  veados) (p.164). De 6 a 10 de janeiro cruzam muitos povoados de índios guarani, sempre com o mesmo bom tratamento (p.165). Seguem em frente, caminhando por entre esses povoados, em que os índios andam desnudos e têm muito medo dos cavalos. Em 14 de janeiro chegam ao rio Iguaçu (atravessando-o próximo à foz do rio Cotegipe, conforme nota da p. 316), num local onde existia outro povoado guarani. Toda a margem do rio é muito povoada pelos índios. “São lavradores e criadores, além de ótimos caçadores e pescadores. Entre suas caças estão os porcos montanheses, veados, antas, faisões, perdizes e codornas. Entre suas plantações, além da mandioca, milho e batata, figura também o amendoim. Também colhem muitas frutas e mel”. (p.166)  E logo adiante os “Comentários” afirmam sobre os índios dessa terra: “Toda a sua gente é muito amiga e com muito pouco trabalho poderão ser trazidos para a nossa santa fé católica” (p.167) (note-se aqui a visão religiosa de um membro do Estado que na época não era indiferente aos objetivos da Igreja, mas comprometido com eles. Por ouro lado, a Igreja também não era indiferente aos objetivos do Estado espanhol,  auxiliando-o na conquista e colonização do Novo Mundo). Os nativos informam a Cabeza de Vaca que os índios e portugueses que Martim Afonso de Souza enviou para a região foram mortos “pelos índios da margem do rio Paraná, quando atravessavam o rio em canoas.” (p.168). Ou seja, Pero Lobo e seus homens, antes referidos,  foram mortos na confluência dos rios Iguaçu e Paraná (cf introdução de Eduardo Bueno, p. 22). Por isso, Cabeza de Vaca decide dividir sua gente. Uma parte iria com ele, em canoas, rio Iguaçu abaixo. E outra, com os cavalos, iria pela margem do rio, protegendo a passagem das canoas (p.168). Mas a correnteza era muito forte e as canoas tiveram que ser tiradas da água e transportadas por terra até ultrapassarem os saltos (Cabeza de Vaca é considerado o primeiro branco a avistar a foz do Iguaçu). Foram depois colocadas no rio Paraná. As canoas foram juntadas duas a duas, como se  fossem balsas, para a passagem dos cavalos e do restante do pessoal, cruzando-se assim o rio Paraná. (p.169). Em seguida Cabeza de Vaca partiu por terra para a cidade de Assunção que estava a nove “jornadas” dali. Voltou a passar por meio de povoados de índios guarani, sendo bem recebido por eles, como das outras vezes (p. 170). Cabeza de Vaca e sua gente chegam a Assunção em 11 de março de 1542 (p.173). Como saiu da ilha de Santa Catarina em 18 de outubro de 1541, levou quase cinco meses para chegar a Assunção (cf. p.317-nota).



47 Id., ibid., p. 314- nota.
48 Martins, Romário-- “História...”, op cit, p. 137
49 “Dicionário Histórico-Biográfico...”, op cit, p. 54

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