Cabeza de
Vaca chegou a Assunção em 1542 e aí recebeu o governo das mãos de Irala. Vinha
da Espanha, desembarcara na ilha de Santa Catarina, onde permaneceria por mais
de 6 meses, e decidira ir até Assunção pelo continente para ali assumir o
governo, reproduzindo assim a proeza de Aleixo Garcia.
Iniciou a
viagem com 250 homens em 26 cavalos e com os indígenas que decidiram acompanhá-lo, enviando o restante de sua
expedição a Buenos Aires pelo mar (sem saber que ela tinha sido despovoada em
1540 47). No tempo que passou na ilha, em
convivência com os índios, teve oportunidade de informar-se bem sobre a região
e também sobre a jornada de Aleixo Garcia, inclusive com os companheiros
náufragos deste, ou seus descendentes, que
ali viviam.
Na
sequência, apresento – pela sua importância como fonte de informação a respeito
do território paranaense na primeira metade do século XVI -- uma síntese da viagem de Cabeza de Vaca e sua
gente por esse território, tal como foi relatada no livro redigido pelo seu
secretário Pedro Hernández, intitulado “Comentários”, publicado em Sevilha em
1555. Usarei, nas citações, a edição
brasileira da L&PM já referida.
Cabeza de Vaca partiu de Cádiz
em 2 de novembro de 1540. Quando chegou a Cananéia, no litoral paulista, “tomou
posse deste local em nome de Sua Majestade” (espanhola) (p. 150) (na época,
discutia-se ainda o ponto exato por onde passava o meridiano de Tordesilhas:
para os portugueses era Laguna, para os espanhóis, Iguape- cf p.314, nota).
Tomou posse também de São Francisco 48 e da ilha
de Santa Catarina, onde desembarca em 29 de março de 1541 (p. 151).
Contactou ali os índios carijó, “do grupo étnico tupi-guarani”,
presentes no litoral brasileiro, de Cananéia ao norte do Rio Grande do Sul (p.314- nota). Nessa ilha, além da morte de
Juan de Ayolas (a quem estaria subordinado, se ainda vivesse), Cabeza de Vaca é
informado que Domingo de Irala governava em Assunção, “situada na ribeira do
rio Paraguai, 120 léguas abaixo do porto de Candelária e distando 350 léguas do
povoado e porto de Buenos Aires, que está assentado no rio Paraná, onde estavam
até sessenta cristãos. A maior parte da gente espanhola que estava naquela
província vivia em Ascensión” (p.153) (é assim que nos “Comentários” consta
o nome da capital desse Paraguai
gigante).
Cabeza de Vaca, na ilha de Santa
Catarina, decide ir por terra até Assunção, como já foi dito. Envia seus navios
para Buenos Aires (três naus e uma caravela, cf p.148). Manda “o feitor Pedro Dorantes para descobrir
caminho por terra firme, na qual os índios nativos já haviam matado muita gente
do rei de Portugal desde que a descobriram” (p.155) (deduz-se daí que os
espanhóis já reconheciam a anterioridade dos portugueses em “descobrir” o
território hoje paranaense. Cabeza de Vaca refere-se aqui, segundo a nota da
p.315, à expedição de Pero Lobo, de 80 homens, enviada por Martim Afonso de
Souza em 1531, que partiu de Cananéia, “seguindo o curso do rio Ribeira, e
depois tomou a direção oeste, no mesmo rumo da jornada épica realizada por
Aleixo Garcia, em 1524.” Essa expedição, de 40 arcabuzeiros e 40
besteiros, foi dizimada pelos índios).
Pedro Dorantes, que partiu com alguns espanhóis e índios, retorna depois de
três meses e meio, com informações sobre o caminho para Assunção.
Cabeza de Vaca inicia a viagem
entrando (de navio) pelo rio Itapucu “no litoral norte de Santa
Catarina, próximo a Barra Velha” (cf. nota da p.315), em 18 de outubro de
1541 (p.156). Deixa na ilha de Santa Catarina 140 pessoas, para que fossem pelo
mar até Buenos Aires. Envia a nau de volta à ilha de Santa Catarina e segue seu
caminho, com 26 cavalos, acompanhado por 250 arcabuzeiros e balisteiros, dois
frades e muitos índios que decidiram acompanhá-los (p.157).
A expedição
atravessa as montanhas e bosques da Serra do Mar e chega aos Campos Gerais (chamados apenas de
“Campo”), “que é onde começa a terra povoada” (p.155), quer dizer,
povoada de índios. No “Campo” estavam as primeiras povoações que
encontraram pelo caminho. Chegam a três povoados de índios, situados muito
próximos um do outro. “Quando esses
índios souberam de sua chegada saíram para recebê-los, carregados com muitos mantimentos e muito alegres,
demonstrando muito prazer com a sua vinda” (p.157). Esse é um fato mencionado frequentemente nos
“Comentários”: toda a vez que Cabeza de Vaca e acompanhantes chegam a um
povoado, os índios, a fim de demonstrar que eles são bem vindos, trazem-lhes
“mantimentos”, os quais sempre Cabeza de Vaca faz questão de pagar com objetos
de interesse deles, objetos de metal como
tesouras, facas, anzóis etc (p.160).
A narrativa esclarece quem são esses índios amistosos:
Esses índios pertencem à tribo dos guaranis; são lavradores que semeiam
o milho e a mandioca duas vezes por
ano, criam galinhas e patos da mesma maneira que nós na Espanha, possuem muitos papagaios, ocupam uma grande extensão de terra e falam uma só
língua.(...) É gente muito amiga, mas também muito guerreira e
vingativa. O governador tomou posse
dessas terras em nome de Sua
Majestade como terras novamente descobertas e deu à província o nome de Vera.
(p.157-158)
Isso
ocorre em 29 de novembro de 1541.
A expedição segue em frente e chega
em 1º de dezembro a um rio “que os índios chamam de Iguaçu, que quer
dizer água grande” (p.158). Segundo a nota da p.316, Cabeza de Vaca e seus
homens atingem aquí “o curso superior do Iguaçu, na região de Tindiquera,
atual Araucária” (grifo meu). Em 3 de dezembro chegam ao rio
Tibagi, nas proximidades da atual cidade de Ponta Grossa (p.316-
nota). Nesse mesmo dia aproximam-se de um outro povoado de índios.
Trata-se, segundo nota da p.316, do grande aldeamento de Abapany, “por onde
cruzava o caminho transcontinental 'Peabiru' (...), que unia a costa do Brasil
meridional com os Andes” (em Abapany, atual Castro, “outro
caminho vindo da foz do rio Itapocu encontrava-se com o Peabiru, rumo ao oeste” 49). Nessa altura da viagem um índio já
convertido procura Cabeza de Vaca e lhe dá notícias de como estão as coisas em
Assunção, para onde ele retornará, servindo-lhe de guia. Cabeza de Vaca, por
isso, dispensa os índios que vieram com ele, desde a ilha de Santa
Catarina (p.159). Os índios que a
expedição acaba de encontrar tinham grande medo de cavalos, que não conheciam
(p.160). Na sequência, chegam a outro povoado de índios guarani, onde são bem
recebidos pelo “principal”, que lhes traz mel, patos, galinhas, milho, farinha
etc (p.160).
No dia 7 de dezembro chegam a um rio
que os índios chamavam então Taquari, em cujas margens estava assentado um
povoado de índios. A nota da p.316 informa que se trata do rio Ivaí, “que
De Vaca transpôs acima do Salto de Ubá”. No dia 14 encontram outro povoado
guarani, onde também são bem recebidos. “Aí descansaram um dia para se
recuperarem da fadiga” /.../ Por todo caminho que se andou depois,
viram-se muitas povoações, sendo terra muito alegre, de muitas campinas, muitas
árvores, muitos rios e arroios de água muito cristalina, toda a terra muito
própria para lavrar e criar.” (p.161)
Cabeza de Vaca segue até o dia 19 de
dezembro sem encontrar nenhum outro povoado, passando muitas dificuldades para
avançar, com os cavalos e mantimentos (face à existência de rios e mata
fechada). No dia 19 chegam a um povoado
de índios guarani, “que vieram recebê-los muito contentes”, trazendo
mantimentos como os já citados, incluindo agora “farinha de pinheiro, que
produzem em grande quantidade, porque há pinheiros tão grandes por ali que
quatro homens com os braços estendidos não conseguem abraçar um. /.../ Por
aquelas terras há muitos porcos montanheses e macacos que comem aqueles
pinhões. /.../ Também há muitas frutas, de diversas qualidades, que dão duas
vezes ao ano”. (p.162-163). Nota da p. 316 esclarece que esses “porcos
montanheses” são na realidade pecaris (também chamados de caititus ou
catetos).
Cabeza de Vaca e sua gente passam o
Natal de 1541 no povoado indígena de Tugui (p.163). De acordo com nota da p.
316, ele ficava nas nascentes do rio Cantu. “A tropa de Cabeza de Vaca,
após cruzar o Ivaí, venceu com grandes dificuldades a escarpa do
planalto paranaense pelo vale do rio Pedra Preta”. Deixam Tugui em 28 de
dezembro. Caminham todo esse dia até chegarem a um rio muito caudaloso e largo,
com muitas árvores nas margens (segundo nota da p.316, trata-se do alto Piquiri).
Depois de atravessarem esse rio, o que lhes deu muito trabalho, passam por
cinco povoados de índios guarani, onde foram bem recebidos, como nas
ocasiões anteriores.
Do dia 1º de janeiro de 1542 ao dia
5 não encontraram povoado algum. Passaram fome nesse período. Alimentavam-se
dos gusanos encontrados nas taquaras que eram fritos (segundo o dicionário
Aurélio, gusano é um molusco de aspecto vermiforme). No dia 6 dormem na margem
de outro rio muito caudaloso (identificado em nota da p. 316 como rio Cobre).
No dia seguinte seguem por terra boa, de muita caça (apanham “porcos
montanheses” e veados) (p.164). De 6 a 10 de janeiro cruzam muitos
povoados de índios guarani, sempre com o mesmo bom tratamento (p.165). Seguem
em frente, caminhando por entre esses povoados, em que os índios andam desnudos
e têm muito medo dos cavalos. Em 14 de janeiro chegam ao rio Iguaçu
(atravessando-o próximo à foz do rio Cotegipe, conforme nota da p. 316),
num local onde existia outro povoado guarani. Toda a margem do rio é muito
povoada pelos índios. “São lavradores e criadores, além de ótimos caçadores
e pescadores. Entre suas caças estão os porcos montanheses, veados, antas,
faisões, perdizes e codornas. Entre suas plantações, além da mandioca, milho e
batata, figura também o amendoim. Também colhem muitas frutas e mel”.
(p.166) E logo adiante os “Comentários”
afirmam sobre os índios dessa terra: “Toda a sua gente é muito amiga e com
muito pouco trabalho poderão ser trazidos para a nossa santa fé católica”
(p.167) (note-se aqui a visão religiosa de um membro do Estado que na época não
era indiferente aos objetivos da Igreja, mas comprometido com eles. Por ouro
lado, a Igreja também não era indiferente aos objetivos do Estado espanhol, auxiliando-o na conquista e colonização do
Novo Mundo). Os nativos informam a Cabeza de Vaca que os índios e portugueses
que Martim Afonso de Souza enviou para a região foram mortos “pelos índios
da margem do rio Paraná, quando atravessavam o rio em canoas.” (p.168). Ou
seja, Pero Lobo e seus homens, antes referidos,
foram mortos na confluência dos rios Iguaçu e Paraná (cf introdução de
Eduardo Bueno, p. 22). Por isso, Cabeza de Vaca decide dividir sua gente. Uma
parte iria com ele, em canoas, rio Iguaçu abaixo. E outra, com os cavalos, iria
pela margem do rio, protegendo a passagem das canoas (p.168). Mas a correnteza
era muito forte e as canoas tiveram que ser tiradas da água e transportadas por
terra até ultrapassarem os saltos (Cabeza de Vaca é considerado o primeiro
branco a avistar a foz do Iguaçu). Foram depois colocadas no rio Paraná.
As canoas foram juntadas duas a duas, como se
fossem balsas, para a passagem dos cavalos e do restante do pessoal,
cruzando-se assim o rio Paraná. (p.169). Em seguida Cabeza de
Vaca partiu por terra para a cidade de Assunção que estava a nove “jornadas”
dali. Voltou a passar por meio de povoados de índios guarani, sendo bem
recebido por eles, como das outras vezes (p. 170). Cabeza de Vaca e sua gente
chegam a Assunção em 11 de março de 1542 (p.173). Como saiu da ilha de Santa
Catarina em 18 de outubro de 1541, levou quase cinco meses para chegar a
Assunção (cf. p.317-nota).
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