terça-feira, 9 de outubro de 2012


O ataque dos bandeirantes


            Com relação à apropriação dos índígenas, as concepções de espanhóis e portugueses diferiam, segundo Lacouture.  A  concepção  espanhola  era  mais  “civilizada”,  a  portuguesa mais brutal. Depois do massacre cometido pelos espanhóis no início da conquista, e das severas advertências feitas pelo frei Bartolomeu de Las Casas e pelos frades franciscanos (convocados por Hernán Cortez), “o poder espanhol tentou 'civilizar' suas estratégias e proceder menos pela pilhagem e o extermínio do que pela influência e a persuasão, questionando a prática do escravismo que será progressivamente condenada” 186. Por influência de Las Casas, em 1543 as “leis novas” preparam a extinção da escravatura, mantendo porém a encomienda, “pela qual o indígena estava à disposição do colono que era o dono, não mais de seu corpo, mas de sua força de trabalho, com a condição de 'conduzi-lo à fé cristã' “ (p. 430).

Embora terrível, o jugo espanhol obedecia a certas regras (...) Ao contrário, no território  português reinava a mais feroz lei da selva (..) o índio era considerado ao mesmo nível do gado, uma  força bruta, e era caçado como um animal. Tanto que as famílias mais poderosas de São Paulo  constituíam bandos de mestiços indo-portugueses, tão ferozes que eram chamados mamelucos-- lembrança da ocupação da península ibérica pelos mouros-- cuja função exclusiva era capturar os  “selvagens” 187.

            O Guairá vinha sendo invadido pelos paulistas já há muitos anos, antes mesmo da fundação das primeiras reduções. Como diz Cortesão: “Desde que os primeiros portugueses se fixaram em S.Vicente, na Cananéia e no planalto, e mais ao sul, na ilha de Santa Catarina, com alguns poucos castelhanos, companheiros de aventura e de naufrágio, o tráfico de escravos com as tribos do sertão tornou-se o principal incentivo da penetração na região do Guairá” 188. Cortesão cita inclusive o nome de alguns “chefes das entradas ao Guairá” no século XVI. Esses pré-bandeirantes

praticavam o Piabiru, ou seja, o sistema de caminhos indígenas, que levavam de S.Vicente, galgando a serra, ou da Cananéia e de Santa Catarina, pela via mais rápida, aos povoados espanhóis do Paraguai, e, subindo este rio e atravessando o Alto Chaco, até ao Peru incaico (1). Este mesmo sistema conduzia, atravessado o Iguaçu, e através do atual estado de Santa Catarina, ao Rio Grande do Sul.  (1) v. Alfredo Romário Martins, Caminhos Históricos do Paraná, in Cincoentenário da Estrada de Ferro do Paraná, Curitiba, 1935 (nota de Cortesão) 189.
           
            Por outro lado, na mesma obra citada-- ”Jesuítas e Bandeirantes no Guairá”-- consta a Relação  feita  pelos  padres  Justo  Mancilla e Simão Maceta sobre os estragos causados  pela grande bandeira de Raposo Tavares às missões do Guairá em 1628 e 1629 (documento XLVI) onde esses padres afirmam: Aumentaram agora os atrevimentos dos paulistas, que há 40 anos saem continuamente a cativar e levar à força índios livres como escravos” 190. Como o documento está datado de 10.X.1629,  para os padres Mancilla e Maceta as incursões dos paulistas no Guairá ocorriam desde o final da década de 80 do  século XVI. Nessa  Relação os padres afirmam ainda que os bandeirantes atacaram as reduções de Santo Antônio (usando como pretexto recuperar o cacique Tatabrana, que ali havia se refugiado; em consequência, acabam levando todos os índios cristianizados), S. Miguel (aí “encontram casas vazias, mas enviam os tupis à busca dos fugitivos pelos bosques”) e Jesus Maria (“Entram os bandeirantes nas casas, aprisionando os indios; saqueiam a igreja, roubam os bens do padre e praticam outras violências”) (reduções números  8, 10 e 14 no mapa nº 6). Outras reduções, em número de quatro (a saber, Encarnação, S. Paulo, Los Angeles e S.Tomé), ainda que não assaltadas, “desfazem-se pelo medo às violências” 191 (reduções números  5, 7, 9 e 13 no mapa nº 6).

            Segundo Schallenberger, apoiado em Pablo Pastells, o apresamento e tráfico de índios da região “era praticado de forma organizada desde 1602” 192. Mas os paulistas, inicialmente, respeitavam as reduções. Seu estatuto expressava na prática a aliança entre a Igreja e o Estado, no caso a coroa espanhola, para quem os índios eram considerados súditos, e formalmente protegidos pela legislação.

            O objetivo dos bandeirantes no Guairá era, naturalmente, a captura dos índios, que representavam a riqueza local mais cobiçada (uma vez que não encontraram aí minas de ouro ou prata). Havia uma demanda garantida pelos índios nos mercados do sudeste, onde eram comercializados para serem utilizados na lavoura canavieira, especialmente numa conjuntura em que o tráfico de escravos africanos era prejudicado pela ofensiva dos holandeses, em guerra com a Espanha e, por extensão, com Portugal, neste período da União Ibérica (1580-1640). É neste contexto que ocorrem as invasões holandesas ao Brasil, à Bahia em 1624 e a Pernambuco em 1630, e também a francesa, ao Maranhão em 1612 193
 
            De acordo com o padre Montoya, atuavam na região os “pombeiros”, os tupi que trabalhavam para os paulistas. Compravam índios com machados, facões, facas, ferramentas bem como com vestidos, chapéus, jaquetas e bugigangas diversas.  Incitavam os gentios a mutuamente se guerrearem a fim de que vendessem a eles os vencidos, cativos 194. Os índios às vezes cativavam membros do próprio clã: “os próprios parentes e moradores de suas mesmas casas os entregam por um machado ou facão, pois já é esta a taxa ou o preço”. Arrebanhados os cativos, os pombeiros avisavam a vila de S. Paulo e as outras da costa, que mandavam então barcos para transportá-los até lá 195.

            Por volta de 1612 os “portugueses de São Paulo” estavam presentes na região. Segundo Shallenberger, A Câmara da Cidade Real do Guairá registrou, em 1612, as inquietações provocadas entre os índios encomendados pelos portugueses, que, com as suas entradas, teriam levado mais de três mil almas para São Paulo” 196.  De acordo com o mesmo autor, entre 1615 e 1619 duas expedições dos bandeirantes, apresadoras de índios, percorreram a região do Guairá. E a partir de 1623, segundo ele, essas expedições se intensificaram 197.

            Chmyz afirma que entre 1610 e 1615 “Sebastião Preto seria o responsável pelos movimentos entradistas ao Guairá.” Depois, em 1618, refere-se à presença constatada de Manuel Preto, irmão de Sebastião, “preando os índios dos arredores” da foz do Tibagi, onde se estabeleceu, bem como aos ataques do mesmo Manuel Preto, entre 1623 e 1624, às  reduções do rio Paranapanema 198.    
 
            Certamente por causa dessas investidas -- visando reservar os índios para a sua tutela, e protegê-los -- os  jesuítas decidem fundar novas reduções mais a leste, contrapondo-se assim ao avanço dos paulistas, que penetravam no Guairá pelo Caminho do Peabiru. Em 1622 os inacianos obtêm autorização do governador do Paraguai para penetrar na região de Taiaoba. 

            Afonso E.Taunay informa que a Câmara de São Paulo, na sessão de 2 de outubro de 1627, demonstrava preocupação com o avanço dos “espanhóis de Vila Rica, cada vez mais, pelas áreas do domínio da Coroa de Portugal, 'descendo todo o gentio que estava nesta coroa para seus repartimentos e serviços de que resultava à capitania grande dano' ”, razão por que decidiu levar ao conhecimento do representante de seu donatário esse fato 199.

            É surpreendente o fato de que entre 1610 e 1622 não se tenha constituído nenhuma redução. Para Shallenberger, isso ocorreu porque houve mudança de orientação por parte do provincial da Província Jesuítica do Paraguai. O padre Pedro de Oñate, que substituiu Diego de Torres Bollo em 1615, conteve “a expansão do espaço missioneiro”, priorizando outras questões 200. A fundação  de  novas reduções foi retomada pelo terceiro provincial,  padre Nicolas Durán Mastrilli. Para Chmyz, a fundação de tantas reduções, especialmente nos anos de 1627 e 1628, ao longo dos rios Tibagi, Ivaí e Piquiri, apresentando-se “como barreiras paralelas”, talvez fosse para “evitar o eminente avanço dos bandeirantes” 201.  Mas essa atitude provocou o efeito oposto.

            Por outro lado, como diz Lacouture, ”A partir de 1628, a vulnerabilidade das reduções se agravou com a nomeação para o cargo de governador de Assunção de um certo Luís de Céspedes, ligado aos portugueses e proprietário de uma plantação de cana-de açúcar no Brasil”. Os paulistas sabiam que ninguém mais socorreria os índios 202.

            Céspedes representava, acrescento eu, o governo da Espanha. Cabia a ele reagir contra o ataque dos portugueses. Porém representava também, na prática, a própria união das duas coroas, quer pelo seu casamento com uma sobrinha do governador do Rio de Janeiro, quer pelos seus interesses econômicos, comuns aos portugueses do Brasil. Desse modo, nada deteria os paulistas, e em 1629 ocorre o primeiro ataque bandeirante, contra a redução de Encarnación, segundo Lacouture 203 (todavia, como se verá adiante, os índios aí capturados seriam devolvidos).

            A grande bandeira de Antonio Raposo Tavares começou a ser preparada em 1627, envolvendo cerca de 4.000 homens 204.  O governador do Paraguai D. Luís de Céspedes y Xeria soube dela com antecedência pois estava no Brasil nessa época. Ainda não havia assumido o governo, o que só fará em Ciudad Real a 8 de setembro de 1628, chegando a  Assunção apenas a 10 de abril do ano seguinte 205. Durante a entrada de 1628-1629, nada fez para defender as reduções contra os portugueses, com quem fizera um acordo, segundo denúncia do padre Francisco Díaz Taño, para repartir entre si os índios capturados 206. O governador Xeria, hostil aos jesuítas, responderia a processo posteriormente pela sua omissão durante os ataques às reduções.

            De acordo com Chmyz, após o ataque à redução de Santo Antônio, que só ocorre em princípios de 1629 (embora os paulistas já tivessem se estabelecido nas proximidades quatro meses antes), certas reduções, como Encarnação de Nossa Senhora dos Guanhanhos, São Paulo, Sete Arcanjos e São Tomé,temendo o mesmo fim”, desfazem-se, como  já foi dito, transferindo-se os índios para as reduções do Paranapanema. Meses mais tarde foram atacadas as reduções de Jesus-Maria e de São Miguel 207.

            Schallenberger diz que o “avanço bandeirante, sobretudo a partir da grande invasão comandada por Antônio Raposo Tavares, entre 1628 e 1631, fez a justiça da Cidade Real do Guairá recomendar “a mudança dos povoados missioneiros”. Afirma ainda, implicitamente, que a ofensiva bandeirante foi ampla e sistemática, pois abrangeu as reduções às margens dos  rios Tibagi, Ivai e Piquiri, além das vilas espanholas: 

Em 1629 arrebataram os índios das reduções de São Miguel, Santo Antônio, Jesus-Maria,  Encarnación, São Francisco Xavier e São José (...). Já em 1632 foram destruídos os povoados  missioneiros do Ivaí e do Piquiri, juntamente com as vilas de Cidade Real e Vila Rica do Espírito Santo. O Guairá havia se tornado o principal alvo dos paulistas, que passaram a introduzir na esfera colonial índios em número crescente, tendo em vista a expansão da base produtiva da Colônia  portuguesa” 208.

            O historiador Afonso E. Taunay assim apresenta os acontecimentos, baseando-se principalmente no relatório dos padres Justo Mansilla e Simão Maceta, que acompanharam os índios capturados até à Vila de São Paulo 209:

            Segundo os padres, diz ele, “à expedição de 1628 a vila inteira de São Paulo se associara” (p.43). Compunha-se ela de 900 brancos bem armados, acompanhados de 2200 indios “seus antigos cativos”.  Praticamente todos os homens brancos da vila, exceto os velhos, participavam da mobilização. A tropa dividia-se em quatro companhias. “O Generalíssimo, afirmavam os dois jesuítas, era Manuel Preto, 'autor de todas estas malocas' 210. Antônio Raposo Tavares comandava a primeira companhia da coluna” (p.44). Anteriormente, Taunay refere-se ao “velho” Manuel Preto e ao “jovem” Antônio Raposo Tavares, afirmando que este era  lugar-tenente daquele, na expedição em questão. Informa ainda que Raposo Tavares nascera em Beja em 1598, e viera para São Paulo muito moço, acompanhando o pai,  Capitão-mor de São Vicente em 1622 (p.43). 

            Em 8 de setembro de 1628 os bandeirantes atravessam o rio Tibagi e aprisionam os índios de Encarnación. Mas depois de uma escaramuça e negociação, Manuel Preto devolve os índios aos padres, “prometendo não atacar as reduções e só cativar índios bravios” (p.44).  Empenham-se então nessa atividade durante 4 meses.  Mas em 30 de janeiro de 1629 Raposo Tavares ordena o ataque à redução de Santo Antônio, onde  os  paulistas  fizeram “grande número de prisioneiros”. Em 20 de março outra coluna apossa-se de Jesus Maria, capturando mais de 1500 índios “homens válidos”.  São Miguel é atacada no dia 23,  mas sua população já a abandonara.

            Todos os índios cativos são levados a São Paulo e os padres Mansilla e Maceta os acompanham (p.45).  Em carta de 13 de dezembro de 1629 Maceta diz que havia uns 8 ou 9 mil prisioneiros e que a marcha de Jesus Maria a São Paulo durara 47 dias. Por outro lado, em relato a seu Provincial dizem Mansilla e Maceta que: “Tinham os bandeirantes o apoio de toda a gente de São Paulo a começar pelo de suas autoridades, até mesmo das eclesiásticas. Eram todos cúmplices naquela faina de desobediência formal, de violação das leis de Sua Majestade” (p.45).  O Provincial do Brasil leva os padres Mansilla e Maceta ao Rio de Janeiro e de lá à Bahia, à presença do Governador Geral. Este ordena que o escrivão da Real Fazenda no Rio de Janeiro parta para a Capitania de São Vicente a fim de  “sindicar da denúncia recebida”. Mas Maceta sentia-se desanimado ao ver que o próprio Governador Geral “não acreditava nas medidas por ele decretadas”.  Em 27 de dezembro de 1629  os dois jesuítas retornam da Bahia para o Sul.  Em São Paulo sentem a hostilidade da população. São “detidos em casa de um particular” e o escrivão da Real Fazenda,  ameaçado de morte,  parte para o Rio de Janeiro “com seu meirinho e escolta de galfarros” (= beleguins ou agentes de polícia, segundo o dicionário Aurélio). Os  dois padres, sem nada conseguir, vão até Loreto, cujo superior, Montoya,  “Ali preparava o êxodo geral do seus catecúmenos para alguma região longínqua do Sul” (p.47).

            Montoya, na “Conquista Espiritual”, refere-se aos padres Maceta e Mansilla, dizendo que eles acompanharam os índios capturados até a vila de S. Paulo e pediram aí por justiça; “mas é coisa de ficção usar aqui o nome de justiça”. Foram maltratados pelos habitantes da vila, que não respeitaram nem a idade do padre Maceta. Para Montoya esses paulistas que se diziam cristãos eram piores que os hereges holandeses, que trataram melhor de outros padres, quando seus prisioneiros 211.

            Loreto e Santo Inácio não haviam sido (ainda) atacadas. Montoya diz que das treze reduções do Guairá, somente essa duas não foram invadidas pelos paulistas. Para lá os padres enviaram os índios salvos das outras reduções 212.
              
            Escreve Chmyz:

Cardiff relata que, em 1631, apenas as reduções de Loreto e Santo Inácio Menor, pela posição estratégica, permaneciam intactas. Nelas existiam cerca de 5.000 índios. Os índios fugitivos, das reduções abandonadas ou destruídas, aproximadamente 7.000, aglomeravam-se nas cercanias das restantes. Vendo a impossibilidade de manter a integridade das mesmas, o então provincial, padre Francisco Vazquez Trujillo, e o superior das reduções, padre Antonio Ruiz de Montoya, concordaram  em abandoná-las 213.

            Era uma decisão difícil de tomar, conforme salienta Lugon:

Nessa época, as reduções do Guaíra podiam já 'figurar ao lado das melhores cidades espanholas do Paraguai', diz Charlevoix. As suas igrejas eram mesmo melhor ornamentadas e maiores  que em qualquer outra localidade, e os neófitos não se distinguiam mais dos antigos cristãos, salvo por  sua inocência e devoção. Alimentavam grandes manadas de bois que os missionários lhes haviam  levado de muito longe. Cultivavam o algodão e não só o colhiam para se vestirem como se permitiam liberalidades com as outras reduções que ainda não estavam capacitadas para usufruir de tais vantagens e até com espanhóis pobres. Todas as suas terras estavam bem semeadas. Mas isso mesmo devia fazer recear que não fosse possível persuadir esses neófitos a abandonarem tão belos e prósperos  estabelecimentos, fruto de tantos anos de trabalho, de que apenas começavam a gozar, para irem buscar  tão longe um exílio, com risco de nem mesmo poderem lá chegar e com uma espécie de convicção de  que aí seriam reduzidos à mais extrema miséria” 214.

            Mas a proposta de migração foi aceita pelos guarani, que segundo Lugon demonstraram então inteira confiança nos padres.  
             Assim, informa Montoya, fabricam-se rapidamente 700 balsas, “sem contar canoas soltas” e embarcam-se nelas “mais de 12.000 almas”, fugindo dali 215. Westphalen e Balhana afirmam o seguinte a respeito: “Sob a direção dos Padres Montoya, Diaz Taño e Simão Masseta, foram, em 1631, retirados os sobreviventes e fugitivos. Foi o grande êxodo, calculado em 12 mil índios, pelos rios Paranapanema e Paraná, contornando os Saltos de Sete Quedas, até a região do Paraná-Uruguai. Era o que restava de 100 mil aldeados e de 200 mil índios estimados, no Guairá” (Westphalen, Cecília Maria e Balhana, Altiva Pilatti-- “Presença Espanhola...”, op cit, p.382).
            Prosseguem as mesmas autoras, apoiando-se em dados citados por Romário Martins na sua “História do Paraná”: “A bandeira de Antonio Raposo Tavares e Manuel Preto teria dizimado cerca de 15 mil índios e escravizado e conduzido para São Paulo cerca de 60 mil peças. Os demais se perderam, fugidos pela matas. Nessa ocasião, tal foi a oferta de escravos índios em São Paulo que o seu preço que era de 100$000 teria baixado a 20$000 a peça” (p. 382).
            As autoras observam ainda que em um memorial do padre Juan Pastor, de 1646, encontrado no Archivo General de Indias, em Sevilla, está dito que “mais de 250 mil almas pertencentes às reduções de Ciudad Real e Villa Rica (...) teriam sido levadas pelos portugueses de São Paulo” (p. 382).
            Os migrantes descem assim o rio Paranapanema e deslocam-se em direção ao sul, pelo rio Paraná. Após muitas dificuldades e sofrimentos, estabelecem-se no nordeste da Argentina atual (região de Misiones), entre os rios Paraná e Uruguai, recriando aí as reduções de Santo Inácio e Loreto 216, na margem esquerda do rio Paraná, ao sul de Corpus.


Euro Brandão- "O grande êxodo"- Museu Paranaense
(extraído de: Secr. Est. da Cultura- "Missões: conquistando almas e territórios". Curitiba, 2009)


           Montoya, na “Conquista Espiritual”, dedica muitas páginas a esse êxodo.

           Uma vez tomada a decisão, pois era iminente o ataque dos paulistas, os índios passam a fazer balsas, reunindo duas canoas ou dois troncos cavados sobre os quais construíam casa coberta, “resistente à água e ao sol” 217. Muitas atividades desenvolviam-se simultaneamente. “O ruído das ferramentas, a pressa e confusão davam a impressão de aproximar-se o juízo final” (p.150). Abandonavam as “igrejas tão lindas e suntuosas” (as de Loreto e Santo Inácio), que deixaram bem cerradas (p. 151). Os paulistas, quando chegaram às reduções e encontraram fechados os templos, investiram contra suas portas, fazendo-as em pedaços. Salienta Montoya que “o lavor e a formosura das mesmas podiam ter feito tremer a  sua  mão atrevida” (p.152). (...) “Entraram eles naqueles templos em tropel e com algazarra, investiram contra os retábulos (dos altares), derrubaram as suas colunas, deram com elas por terra e, aos pedaços, levaram-nas para cozinhar as suas comidas. (...) Depois se alojaram nas igrejas e em nossas celas ou aposentos, enchendo-os de índias, quando antes tal lugar nunca jamais havia visto mulheres” (p.152) . Na sequência Montoya faz um balanço do que foi alcançado nas treze reduções, destacando as mancebias que se desfizeram e a conversão de muitos gentios. Quanto a estes, nos livros que os padres conseguiram salvar (outros foram queimados), havia o registro de mais de 22.000 almas (p.153).

            Voltando a tratar do deslocamento dos índios pelo rio Paraná, Montoya afirma que os espanhóis, moradores de Ciudad Real, aguardavam as balsas num local estreito e perigoso junto ao grande salto (p.153). Levantaram aí uma fortaleza de troncos visando impedir sua passagem e “cativar a nossa gente” (p. 154).  Após três vezes os padres irem negociar sua travessia por ali, na última das quais Montoya chega a ameaçá-los de confronto, que redundaria na morte deles (p.154), os espanhóis finalmente cedem (p.156). 

            Depois, devido à violência das águas daquele salto (Sete Quedas) , abandonam as canoas e seguem por terra. Seu objetivo é descer o rio Paraná “em busca das povoações que às margens de seu curso a Companhia tinha erguido” (p.156) (as mais próximas eram as reduções de Natividad de Nuestra Señora de Acaray, no atual Paraguai, e Santa María del Iguazu, no rio Iguaçu, pouco antes das cataratas) (v. mapa nº 9).  Aumenta o número de índios com a chegada daqueles que integravam as “mais remotas reduções do Tayaoba” (p.156).  Os migrantes levam consigo “harpas e outros instrumentos musicais, com que em sua pátria faziam música a Deus ao ensejo de suas festividades” (p. 157). A viagem por terra, desviando as quedas d'água, leva oito dias. Retornam depois ao rio Paraná, que agora é navegável. Aguardam embarcações e alimentos vindos das reduções mais abaixo (p.157), as quais passarão a lhes dar apoio enquanto reinstalam Loreto e Santo Inácio em local apropriado, à margem esquerda do Paraná, entre esse rio e o Uruguai.  Os padres vendem tudo o que possuíam (livros, batinas e mantos, ornamentos, cálices e alfaias de igrejas) em Assunção em troca de sementes para o plantio. Um morador de Corrientes, dono de uma grande criação de vacas, doa-lhes muitas cabeças. Mas mesmo matando, cada dia, de 12 a 14 vacas, isso dava apenas uma porção tão  pequena para cada índio que eles continuavam famintos, fazendo-os lembrar-se “da grande abundância gozada em suas terras” (no Guairá) (p. 160). Em todo esse tempo de dificuldades gastaram-se 13.000 vacas, e também 2.000 pesos (da Companhia) em “coisas de algodão, lã e tecidos”, além de sementes (p.162). Quanto a estas, os índios inicialmente as comiam em vez de plantá-las (ou plantavam, mas retiravam depois os grãos das covas), o que fez com que fosse instituído o castigo de condenar ao cepo os delinquentes (p.161).  Mas passam-se os meses, as terras dão os seus frutos, enchem-se os celeiros de milho, mandioca e legumes (p.162); são comprados patos, galinhas e pombas; como o algodão não dá bem, por causa do inverno, Montoya lhes comprou 1800 ovelhas, “para   que com a lã e algodão fizessem as suas vestes” (p.162). Consolida-se assim a refundação de Loreto e Santo Inácio nessas novas terras.

            O ataque dos bandeirantes às reduções do Guairá significou, segundo Lugon, a captura de quinze mil guaranis das reduções, além do roubo de seus rebanhos 218. Afirma que a  cumplicidade  do governador do Paraguai Luis de Cespedes com os paulistas foi notória.  Ele, que tinha boas relações no Brasil, passou por Loreto vindo do Brasil (quando se preparava em nosso país  a grande expedição dos paulistas) e não atendeu ao pedido do padre Montoya no sentido de reforçar a defesa das reduções do Guairá. “O relatório do Padre Provincial Trujillo estabeleceu que o Governador Cespedes favorecia diretamente os crimes dos mamelucos” 219. Os mamelucos eram os paulistas ou portugueses de São Paulo de Piratininga, cidade cujo nome, diz Lugon, fora dado pelo padre Manuel da Nóbrega, primeiro provincial da Companhia de Jesus no Brasil. Ele e o padre Anchieta “tinham fundado em São Paulo um colégio que continuava, na época das grandes razias, a instruir placida e piedosamente, segundo as regras, os filhos dos nobres capitães, chefes das expedições escravistas contra os cristãos guaranis” 220. Como se vê, os próprios jesuítas são também objeto da crítica do abade Lugon. 

            Após os ataques às reduções, os paulistas se voltam para os dois núcleos urbanos espanhóis existentes no Guairá. Segundo Taunay, 221 em meados de 1631 a situação de Ciudad Real e Villa Rica era muito crítica. O bispo do Paraguai, D. Cristóvão de Aresti, parte para a região. Além disso, o cabildo de Assunção, em sessão de 20 de outubro de 1631, decide enviar para lá uma  “expedição de socorro”. Em 26 de agosto de 1632 o Bispo está em Villa Rica, onde “4500 espanhóis e índios seus encomendados” estão sitiados pelos “portugueses de San Pablo” (segundo Montoya, Villa Rica abrangia então 300 homens e 9 “pueblos” de índios, seus serviçais) 222. Há fome na cidade, tendo em vista a interrupção do seu abastecimento alimentar. O Bispo verifica a inutilidade da resistência e chefia o êxodo geral dos sitiados para o outro lado do rio Paraná (i.e. para a sua margem direita), onde os retirantes já estão estabelecidos em 20 de outubro de 1632. Quanto a Ciudad Real, seus habitantes abandonam tal povoação, “Espavoridos com o que sucedera aos seus vizinhos longínquos de Vila Rica”. 

            Afirma Gadelha que os habitantes de Villa Rica e Ciudad Real fundaram a nova Villa Rica  no  distrito  de  Maracaju  ( que  ficava  “na  entrada  do Guairá, entre os rios Iguatemi, afluente do Alto -Paraná, e Ipané, afluente do rio Paraguai” ) 223, e aí  permaneceu até 1676, quando os povoados índios e espanhóis desse distrito foram atacados pelos paulistas, sob o comando de Francisco Pedroso Xavier. Após 1676, estabelecida em outro local, já não detém mais o domínio do comércio de erva-mate, sendo substituída nesse papel por Assunção 224.
 
            Para Lugon as reduções do Guairá chegaram a ter uma população de mais de cem mil pessoas 225. Segundo ele, após as invasões dos paulistas e a grande migração, o Guairá, “por um instante animado, cultivado, coberto de ricas igrejas e pequenas cidades florescentes de seis a dez mil habitantes cada, fora devolvido à sua solidão secular” (p.59). Mais adiante, Lugon reafirma a importância populacional das reduções da região: “certas reduções tinham atingido ou ultrapassado a cifra de 10.000 habitantes já no primeiro período, na região de Guaíra”(p.79). Essa população das reduções do Guairá era muito significativa para a época. Para se ter uma idéia de sua importância, basta lembrar a informação, dada por Gadelha e citada anteriormente, de que Assunção, em sua fase áurea, por volta de 1557, possuía em torno de 7.500 habitantes (“uma grande cidade para a época”). E Lugon mesmo informa que a população de Buenos Aires, em 1725, situava-se em torno de 5 mil habitantes (p.85). As chamadas “cidades” coloniais espanholas, diz ele, excetuando Buenos Aires, não passavam, na realidade, de aldeias. A denominação de cidades cabia mais às reduções do que a aquelas. Todavia, os padres as chamavam “povoados” ou “aldeias” e subestimavam sua população nos documentos oficiais com receio de ferir a sensibilidade das autoridades espanholas: “(...) a República Guarani tinha de fazer-se muito pequena para não provocar o mundo colonial” (p.78).  Para Lugon,  “As reduções guaranis (...) formavam autênticas cidades para a época, tanto por sua ordenação geral, suas dimensões e a arquitetura de seus edifícios, como por sua vida social intensa, suas atividades variadas e a cifra populacional.” (p.78).

            Montoya conclui seu livro transcrevendo uma Cédula Real de Filipe IV, de 1633, dirigida ao Vice-Rei do Peru,  pela qual o Rei de Espanha reafirma a liberdade dos índios, considerando-os  da mesma forma que os reis seus progenitores os consideravam, i.e. livres como os demais vassalos do reino. Nessa Cédula também deixa claro estar abolido o “serviço pessoal” aos encomendeiros.  Tal documento era certamente de muita valia para quem se apresentava na Corte de Madri a fim de pedir providências em favor das reduções na América espanhola e autorização para armar os índios 226,  face à persistência da ameaça bandeirante, mesmo após a tragédia do Guairá, sobre as outras reduções (aquelas estabelecidas nas margens dos rios Paraná e Uruguai, e as do Tape e Itatim).

            Conforme  consta  do  Memorial  apresentado  por  Montoya  à  corte española (documento LX, de 1639, aproximadamente, incluído em “Jesuítas e Bandeirantes no Guairá”, op. cit.) os padres e seus índios chegaram a oferecer uma resistência armada aos portugueses de S.Paulo, para não lhes deixar livre o caminho do Peru. Mas não puderam enfrentar a maior capacidade bélica do adversário. Montoya afirma nesse Memorial, conforme o “Sumário” elaborado por Jaime Cortesão, que os paulistas destruíram três cidades (Ciudad Real, Vila Rica e Xerez), 11 das 13 reduções do Guairá e “7 aldeias de índios encomendados”, “com ânimo de utilizar livremente o caminho do Peru. Por este motivo o suplicante lhes saiu ao caminho com 3 mil índios flecheiros, para estorvar-lhes a passagem. Mas foi-lhe força retirar-se, porque os paulistas, além de levarem 5 mil índios tupis, formavam 3 bandeiras 'de esquadra', com cerca de 200 mosqueteiros227.

            Cortesão considera a “Conquista Espiritual” “livro de propaganda, que visava atrair sobre os bandeirantes de São Paulo, as cóleras de Filipe IV e dos seus Conselhos e mandatários”(p.80).

            Na opinião desse autor, a responsabilidade pela destruição das reduções do Guairá não cabe somente aos bandeirantes. Cabe também aos espanhóis e aos próprios padres. Aos espanhóis, porque nada fizeram para impedi-la. Eles hostilizavam os jesuítas porque prejudicavam os seus interesses, na medida em que defendiam a liberdade dos índios e criticavam o sistema das “encomiendas”.  Aliás, quanto a esse assunto, o volume “Jesuítas e Bandeirantes no Guairá”, op cit, inclui um Memorial contra o governador Luis de Cespedes y Xeria (documento LVIII) onde consta esta passagem bem reveladora, de acordo com o “Sumário” preparado por Cortesão (p.485): “(...) com temor seu, os escrivães não faziam diligências, nem davam testemunhos contra os portugueses que destruíram as reduções, e os próprios espanhóis, ao invés de saírem em defesa dos índios, organizaram 'malocas' para cativar os que escaparam daqueles assaltos”.

            A responsabilidade cabia também aos  próprios jesuítas porque nem sempre usaram com os paulistas “da prudência e benignidade mais próprios de seu apostolado” (p.85). Nesse sentido, Cortesão ressalta o “caráter veemente e autoritário” (p.83) do padre Montoya, “antigo soldado”, que assumindo a direção das missões tomou o partido espanhol numa época em que a disputa entre portugueses e espanhóis pela posse da terra era acentuada. Entrou assim em conflito direto com os bandeirantes, chegando a encarcerá-los, com os seus  índios tupi, dentro das próprias reduções. Isso não ocorria apenas pelo interesse deles em escravizar os indígenas, mas também  por disputarem com os espanhóis o domínio daquelas terras:  “O que levava (...) os espanhóis, quer civis, quer religiosos, maiormente os primeiros, a encarcerar os bandeirantes, que penetravam, no Guairá eram motivos de soberania política (e econômica) que supunham violada, querelas de nação a nação (...)” (p.83).
                                                                                                                                                   
            Segundo Lacouture, um século depois do tratado de Tordesilhas ninguém mais sabia quais eram as fronteiras que o papa Borgia (Alexandre VI) havia traçado nesse campo de permanente disputa entre as duas potências ibéricas. Para esse autor, a república jesuítico-cristã foi criada ou aceita pela coroa espanhola como um estado tampão entre os domínios coloniais dos dois impérios: o de Espanha e o de Portugal. “Assim, em 1649, Filipe IV de Espanha concedia aos guaranis o direito de vassalagem enquanto 'barreira do Paraguai contra o Brasil'228.

            Documentos que integram “Jesuítas e Bandeirantes no Guairá”, levam Cortesão a afirmar que “desde 1618, pelo menos, os jesuítas pediam ou reservavam-se armas de fogo para os índios.” (p.90).  E que em 1628 os índios, “por instrução dos padres e instigação do provincial Trujillo, as utilizaram contra os bandeirantes” (p.90).

            Ainda de acordo com Cortesão, Montoya “expõe em Madrid as razões de política geográfica que levaram os paulistas a atacar e destruir as reduções do Guairá e aos jesuítas a defendê-las com mão armada” (p.90). 

            Curiosamente, também no caso do Tape (no atual Rio Grande do Sul)  haveria omissão das autoridades coloniais espanholas, que não ofereceram apoio militar às reduções nem combateram os portugueses de S.Paulo 229.  Certamente, a passividade da Espanha tem a ver com a conjuntura política do final do período da União Ibérica (1580-1640), em que as conveniências de uma coroa espanhola enfraquecida recomendavam ignorar o apoio velado que Portugal dava às investidas dos bandeirantes.
            O país estava então envolvido simultaneamente em duas guerras, a dos Países Baixos, em que as províncias do norte, calvinistas, lutavam por sua autonomia frente à Espanha católica desde 1565 (apesar da Trégua de Doze Anos, a partir de 1609) e a Guerra dos Trinta Anos, que contou com a participação espanhola desde o seu início, em 1618. Com a paz de Westfalia, ocorrida em 1648, que encerrou essa Guerra, a Espanha foi obrigada a reconhecer a independência da Holanda. Mas continuaria ainda em conflito com a França, encerrado apenas em 1659 (cf  García-Saúco, Juan Antonio Sánchez- “Quando a Espanha governou Portugal e Brasil”, p. 46-50, in “Nossa História” ano 4, nº 38)
            Schallenberger afirma que foram as bandeiras de Antônio Raposo Tavares (1636), André Fernandes (1637-1638) e Fernão Dias Pais (1639) que entraram na região do Tape e assolaram as reduções, das quais levaram milhares de índios (os que não foram capturados transferiram-se para a outra margem do rio Uruguai, em atual território argentino).

            Por outro lado, Gadelha assim se manifestou a respeito dos ataques dos bandeirantes em diversas regiões do território hoje brasileiro: 

Jaime Cortesão, em exaustivo estudo sobre as bandeiras de Antonio Raposo Tavares, examinou os ataques paulistas às cidades espanholas do Guairá e Itatim, à luz de uma geopolítica que comandaria a expansão territorial brasileira. Projeto que teria sido pacientemente desenvolvido pelos portugueses, inconformados com os termos do Tratado de Tordesilhas. Assim, não seriam fortuitos os ataques dos paulistas às reduções jesuítas, nem os bandeirantes teriam sido levados apenas pela possibilidade de mais fácil apreensão das pacíficas populações indígenas destas Missões. Ao contrário, se inspirariam no nacionalismo português e nos interesses territoriais do Conde de Monsanto, donatário da capitania de São Vicente. As bandeiras de 1627-28 e 1628-29, que destruíram o Guairá, assim como as de 1636-37 que invadiram as Missões jesuíticas do Tape, teriam que ser olhadas dentro do mesmo espírito que norteou a Revolução portuguesa triunfante, de 1º de dezembro de 1640. Determinado a aumentar as possessões do Conde de Monsanto, de quem era valido230, Raposo Tavares se empenharia  em varrer os espanhóis de territórios que considerava pertencentes à Coroa de Portugal. Não importa ao nosso  estudo discutir estas idéias, mas importa saber que, antes de meados do século, o Paraguai   perdera definitivamente os territórios do Guairá, Tape e Itatim, esta última Província se tornando domínio dos guaicuru 231.
           
            Acrescenta Gadelha, na p. 173, que Raposo Tavares destruiria as novas Missões jesuítas do Itatim por volta de 1647-48.  

            Após o padre Montoya conseguir autorização em Madri para armar os índios, estes ofereceram resistência militar aos bandeirantes e repeliram seu avanço sobre as missões estabelecidas na região entre os rios Paraná e o Uruguai. Esse foi o resultado da batalha de Mbororé, ocorrida às margens do rio Uruguai, em 1641 (antes, os índios chegaram a vencer os paulistas nas batalhas de Caazapa Mirim em 1638 e na de Caazapa Guaçu em 1639) 232.

            O Barão do Rio Branco, em suas observações sobre as reduções do Guairá contidas em “Esboço da História do Brasil” e na Exposição ao presidente Cleveland por ocasião da Questão das Missões já citadas,  arrola uma série de fatos que mostram o progressivo domínio dos bandeirantes sobre amplo território conquistado para Portugal.
            Segundo ele, após os ataques ao Guairá, as reduções da Santa Maria Maior do Iguaçu e da Natividade de Acaraig foram evacuadas (p.32). Antes disso, em 1632, os paulistas atravessaram o Alto Paraná e tomaram conta de três reduções de índios “itatinos” que os jesuítas acabavam de fundar no Mato Grosso, assim como da povoação espanhola de Santiago de Jerez (p.32).
            De 1621 a 1634, os “jesuítas do Paraguai” estenderam seus estabelecimentos pelo território do Rio Grande do Sul atual (a parte oriental do território era designada pelo nome de província de Tape- p.33). No tempo da primeira invasão dos paulistas, em 1636, havia ali 15 reduções, cujos nomes e anos de fundação Rio Branco cita. ”Todos esses estabelecimentos foram tomados pelos paulistas, sob o comando de Raposo Tavares, ou abandonados pelos jesuítas e seus índios, depois de renhidos combates” em 1636 e 1638 (ocorreram neste último ano, segundo ele, os de Caazapaguaçu e Caazapamini). “Em 1638, os paulistas completaram a destruição dos estabelecimentos espanhóis ao oriente do Uruguai” (p.34). Os jesuítas transferem para o lado ocidental do Uruguai os índios que conseguem escapar, incorporando-os às missões ali existentes ou formando novas (p.36). Em março de 1641, os paulistas tentaram atacar as missões estabelecidas entre o Uruguai e o Paraná mas foram repelidos pelos guarani, perto de Mbororé (margem esquerda do Uruguai) (p.34).

            Depois dessa resistência indígena, e da Restauração portuguesa (1640), diminuem e por fim cessam os ataques bandeirantes. Isso vai possibilitar que nos cento e tantos anos posteriores, trinta reduções, localizadas em ambas as margens do Paraná e Uruguai, viessem a se consolidar e prosperar. Localizavam-se nos atuais territórios da Paraguai (8 reduções), Argentina (15) e Brasil (7) (v. mapa nº 10). São as seguintes: 

Paraguai: Sta. Maria da Fé, Sta Rosa, S. Ignazio Guazu, Santiago, S. Cosme, Itapua, Jesus, Trinidad

Argentina: Corpus, S. Ignacio Mini, Loreto, Candelaria, Sta. Ana, Martires, S. Javier, Sta Maria Mayor, S. Carlos, S. José, Apostoles, Concepción, Santo Thomé, La Cruz, Yapeyu  

Brasil: S. Borja, S. Nicolau, S. Luiz, S. Lourenço, S. Miguel, Santo Ângelo e S. João.

            Abrangiam, segundo Lacouture, um território de 350 mil km² aproximadamente, onde viveram cerca de 200 mil índios guarani e pouco mais de 200 padres jesuítas, “30 dos quais, por uma razão ou por outra, foram massacrados” 233. Lacouture prossegue afirmando que havia uma capital política-religiosa  ao norte (Candelaria) e uma capital econômica ao sul (Yapeyu) (p. 440). Duas atividades econômicas assumiram importância excepcional nessa região: a pecuária e o mate. Mas o  mate --  bebida favorita dos habitantes da região --  “é que foi responsável pela riqueza, e talvez pela ruína,  da república dos guaranis” (p 454).  Pois a concorrência das reduções deixava “os colonos espanhóis exasperados”... (p.448)

            Das diversas reduções estabelecidas no território do atual Rio Grande do Sul, sobreviveram e prosperaram aquelas sete, mencionadas acima, que ficaram conhecidas como os Sete Povos das  Missões. Foram fundadas a partir de 1682, como resposta espanhola à instalação portuguesa da Colônia do Sacramento em 1680 na margem superior do Rio da Prata, conforme Schallenberger, que afirma: “As missões assumiram, desta forma, o caráter ambíguo de defesa do espaço missioneiro e, ao mesmo tempo, de instituições de fronteira para o império espanhol234. Mais tarde, o Tratado de Madri (1750), sem ouvir a população afetada,  determinava a transferência dos Sete Povos para Portugal em troca da Colônia do Sacramento, que passava  para a Espanha. A inconformidade indígena com os termos desse tratado traria como consequência a Guerra Guaranítica (1754-1756) e o surgimento das  lideranças de Sepé Tiaraju e Nicolau Neenguiru. Em 1756 os indígenas seriam derrotados pelos exércitos unidos dos dois países ibéricos.
  
            Em 1759, no governo do Marquês de Pombal, os jesuítas seriam expulsos de Portugal e suas colônias, por se acreditar que teriam fomentado a oposição indígena ao cumprimento do Tratado 234 e por quererem criar um “Estado dentro do Estado” (a República Guarani?). Em 1767  os jesuítas também seriam expulsos dos domínios espanhóis.






186 Lacouture, Jean-- “Os Jesuítas”, op cit, p. 430
187 Id., ibid., p. 430-431
188 Cortesão, Jaime-- “Jesuítas...”, op cit, p. 67
189  Id., ibid., p. 69-70
190  Cf “Sumário” de  Cortesão in  “Jesuítas...”, op cit, p. 459 
191 Cf. “Sumário” de Cortesão in  “Jesuítas...”, op cit, p. 460. Para o padre Techo o nome do cacique é Tataurana (cf. nota 176). 
192 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 59
193 Caldeira, Jorge et al.- “Viagem pela História do Brasil”, op cit, p.49-52; Becker, Idel-- “Pequena História da Civilização Ocidental”. 7a ed. S.Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975- p.374-375.  O assunto já foi referido antes nesta monografia quando se tratou rapidamente da Espanha no contexto internacional dos séculos XVI e XVII (v. final do tópico “Fundação de Villa Rica”). 
194 Montoya, Pe. Antônio Ruiz de-- “Conquista...”, op cit, p. 257
195 Id., ibid., p. 258
196  Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 74
197  Id., ibid., p. 76
198  Chmyz, Igor-- “Arqueologia e História...”, op cit, p. 90-91
199  Taunay, Afonso E.-- “História...”, op cit, p.36
200 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 75 e 77. Segundo Aguilar, Jurandir Coronado- “Conquista...”, op cit,  estes foram os provinciais da Província Jesuítica do Paraguai até 1640: Diego de Torres Bollo (1607-1615), Pedro de Oñate (1615-1623), Nicolás Durán Mastrilli (1623-1629), Francisco Vázquez Trujillo (1629-1633), Diego de Boroa (1634-1640).
201 Chmyz, Igor-- “Arqueologia e História...”, op cit, p.90
202 Lacouture, Jean-- “Os Jesuítas”, op cit, p.445
203 Id., ibid., p. 445
204 Chmyz, Igor-- “Arqueologia e História...”, op cit, p. 91. Segundo Westphalen e Balhana, a bandeira estava a cargo de Antonio Raposo Tavares e Manuel Preto e compunha-se de “69 paulistas, 900 mamelucos e 3.000 índios, na sua maioria tupis” (Westphalen, Cecília Maria e Balhana, Altiva Pilatti-- “Presença Espanhola...”, op cit, p.381).
205 Taunay, Afonso  E.-- “História...”- op cit, p. 40-41
206 Chmyz, Igor-- “Arqueologia e História...”, op cit, p.92. A “História Geral da Civilização Brasileira”, op cit, p. 286, afirma o seguinte sobre D. Luís de Céspedes:  “Casado com uma sobrinha de Martim de Sá, governador do Rio de Janeiro, senhor de engenho naquela localidade, teria sido um dos cúmplices dos bandeirantes, por ligações de interesse, dando-lhes inteiro apoio, concedendo-lhes todas as facilidades, em troca de índios para seu engenho no Rio de Janeiro e para seus ervais de mate de Maracaju, fornecedores do produto para os mercados do Prata.”
207 Chmyz, Igor-- “Arqueologia e História...”, op cit, p. 91
208  Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 83
209 Taunay, Afonso  E.-- “História...”- op cit, p. 43-47
210 Para o conceito de “maloca”, v. nota 60. 
211 Montoya, Pe. Antônio Ruiz de-- “Conquista...”, op cit, p. 144-145     
212 Id., ibid., p. 148
213 Chmyz, Igor-- “Arqueologia e História...”, op cit, p. 93
214 Lugon, Clóvis- “A República...”, op cit, p. 56-57
215 Montoya, Pe. Antônio Ruiz de-- “Conquista...”, op cit, p. 151
216  Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 83 e 107.  Cf. observações do Barão do Rio Branco sobre as reduções do Guairá contidas em “Esboço da História do Brasil” e na exposição ao presidente Cleveland por ocasião da Questão das Missões- apud Negrão, Francisco- “Genealogia Paranaense”-v.I, 1926, p.30-39- ed. facsimilar publicada pela Imprensa Oficial do Estado do Paraná. Rio Branco afirma aí também que os catecúmenos desceram pelos rios Paranapanema e Paraná porque a viagem por terra era impossível devido à presença mais ao sul dos caingangue ou coroado, “senhores da margem do Iguaçu e do Uruguai” (p.35). Segundo o Barão tais índios eram inimigos dos guarani “e não permitiam que estes e os jesuítas espanhóis se aproximassem, ao passo que deixavam franco o caminho para os paulistas, e até os auxiliavam em seus ataques contra as missões” (p.36). A propósito, o ponto-de-vista de Rio Branco é ostensivamente a favor dos bandeirantes, os quais primeiro teriam sido atacados pelos indígenas, e só depois tomaram a decisão de “se desembaraçar de seus inimigos” (p.30). No caso do Guairá, ele diz que de início, em 1627, “os paulistas foram atacados pelo cacique Tayobá, aliado dos jesuítas espanhóis. No ano seguinte para se vingarem dessa agressão, os paulistas assolaram as fronteiras da província de Guairá.” E mais adiante, afirma: “(....) os paulistas, dirigidos por Antonio Raposo Tavares, que tinha sob suas ordens Frederico Mello, Antonio Bicudo, Simão Alvares e Manoel Morato Coello, subiram o Ribeira de Iguape, atravessaram a serra de Paranapiacaba e precipitaram-se contra a parte meridional da província de Guairá. Bicudo apoderou-se de S. Miguel; Alvares, de S. Antonio; Morato, de Jesus Maria. 'Vimos', diziam eles, 'expulsar-vos deste país, porque nos pertence e não ao rei da Espanha'. No ano seguinte, os paulistas apoderaram-se de S. Pablo e S. Xavier, repeliram nessa última aldeia um ataque de espanhóis de Vila Rica, depois apoderaram-se de S. Pedro e de Conceição dos Galachos” (p.31-32). 
217 Montoya, Pe. Antônio Ruiz de-- “Conquista...”, op cit, p. 150. As próximas citações das páginas desse livro constarão no próprio texto.
218  Lugon, Clóvis- “A República...”, op cit, p. 46 e 48
219 Id., ibid., p. 50- nota
220 Id., ibid., p. 51
221 Taunay, Afonso E. -- “História...”, op cit, p. 49  
222  Montoya, Pe. Antônio Ruiz de -- “Conquista...”, op cit, p. 149
223 Gadelha, Regina Maria A.F.-- “As Missões...”, op cit, p.183, nota 228
224 Id., ibid., p. 167 e 171
225 Lugon, Clóvis- “A República...”, op cit, p. 58. As páginas das próximas citações dessa obra constam do próprio texto
226 Cf o prólogo da edição de 1892 in “Conquista Espiritual”, op cit, p.14
227 Cortesão, Jaime- “Jesuítas...”, op cit, p. 488-489. As páginas das próximas citações dessa obra constam do texto.
228  Lacouture, Jean-- “Os Jesuítas”, op cit, p.440-441
229 Chmyz, Igor-- “Arqueologia e História...”, op cit, p. 94
230 Conforme o dicionário Aurélio, “valido” significa “Protegido. Especialmente estimado”. Nota acrescentada por mim.
231 Gadelha, Regina Maria A.F.-- “As Missões...”, op cit, p. 171-172 
232 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p.99-100;  Enciclopédia Mirador Internacional, v. 11, op  cit, p. 5531
233  Lacouture, Jean-- “Os Jesuítas”, op cit, p. 431
234 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p.114
234 Id., ibid., p. 145

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