terça-feira, 9 de outubro de 2012


As reduções: caracterização de toda a experiência


            É possível caracterizarmos rapidamente as reduções, levando em conta toda essa experiência histórica e o conhecimento acumulado que temos sobre elas, exposto nos trabalhos mais importantes sobre o assunto e apresentados sinteticamente no livro de C.Lugon- “A República 'Comunista' Cristã dos Guaranis” nos quais se apoia, citando-os extensamente. Independentemente de aceitarmos ou não a interpretação do autor sobre o caráter da República Guarani, é inegável a utilidade da obra como repositório de informações preciosas sobre as reduções, oriundas de fontes de difícil acesso, muitas vezes. 

            Para Lugon, a República Guarani foi uma república de índios livres, de caráter cristão e comunista. Segundo ele,

No começo do século XVII, quando foi criada a República Guarani, a idéia de uma organização geral da  sociedade na base de comunidades pairava no ambiente. Reatavam-se pequenas experiências  comunitárias, isoladas e perdidas no meio de uma sociedade individualista. Foi a época em que estiveram em voga as utopias comunistas com base no humanismo cristão. A Utopia de Thomas Morus e a Cidade do Sol de Campanella foram apenas dois dos exemplos mais célebres 146.

         Os fundadores da República Guarani podem ter sido influenciados por tais idéias ao buscar concretizar seu projeto entre os guarani do Novo Mundo. 

            Para Lacouture, todavia, o projeto das reduções inspirou-se  muito menos nos modelos estrangeiros do que nas tradições do continente (coletivismo dos incas) e guaranis, embora afirme que o sistema de caráter coletivista, ou melhor, comunitário que os padres impuseram aos índios sobre tais tradições seja o “seu sistema de organização produtivista europeu”, inspirado nos grandes mosteiros da Idade Média 147. Estavam coerentes com as tradições guaranis a flexibilidade da organização social, o equilíbrio entre a autoridade do cacique e as responsabilidades do cabildo, o igualitarismo e a proteção da família nuclear, embora as reduções contrariassem algumas delas (o seminomadismo, o individualismo, “a espontaneidade indolente, ao sabor das necessidades”, que  conflitava com “o trabalho como lei da cidade”) (p.437).
           
            Lacouture contesta o caráter socialista ou comunista do Estado jesuíta. Afirma que se trata de uma impropriedade assim qualificá-lo. As reduções, que  tinham uma certa autonomia administrativa, e mais tarde também econômica e militar, dependiam de Madri e de Roma.  Na realidade tratava-se de “uma confederação de teocracias cooperativistas autônomas” tão pouco independentes que quando “pretenderam afirmar sua existência diante de um tratado injusto (o tratado de 1750) que as destinava à desintegração, foram desmembradas e dispersas” (p.440). Por outro lado, as  reduções recebiam apoio de “centros capitalistas” representados pelos colégios jesuítas, localizados em Buenos Aires, Córdoba, Assunção e Santa Fé, que eram entidades poderosas economicamente, verdadeiros latifúndios (em decorrência das doações ou compras de  terras), os quais inclusive empregavam escravos negros (p.441). 

            Também Kern questiona a influência de modelos apriorísticos, incluindo aquí os da  própria América, quando se refere às trinta reduções jesuíticas que se consolidaram e prosperaram  (“definitivamente estabelecidas” no período que se inicia “com a derrota dos bandeirantes paulistas, em 1641, e vai até 1707, quando “é fundada a última das povoações missioneiras, no Rio Grande do Sul”):

A análise  dos  Trinta  Povos  como  um  todo, ao  contrário  do  que  já  se  tentou  provar, não confirma as hipóteses de ter sido a sua organização política uma unidade estatal independente, nem possuir modelos anteriores que possam ter servido como projeto inicial. A regularidade do plano das  Missões, com as ruas paralelas e sua praça  central com a igreja, seguia a tradição das cidades espanholas, enquanto a organização social interna das casas comunais obedecia aos costumes da tradição indígena dos guaranis. Análise crítica das diversas hipóteses mostra que os modelos propostos   (a “Cidade do Sol”, a “Utopia”, o Império Incaico, as Reduções jesuíticas ou franciscanas anteriores, etc) não se sustentam plenamente nas fontes documentais, mas apenas em semelhanças ou aparências fortuitas, não sendo de muita utilidade do ponto de vista político. Antes de tudo uma obra de circunstância, a organização política dos Trinta Povos é originária de uma efetiva adaptação da  legislação e costumes espanhóis à cultura dos guaranis, bem como a uma situação de fronteira. É, portanto, o resultado de um processo histórico e não de modelos apriorísticos. A utopia política existente foi estabelecida após a sua implantação, ao criar um espaço de liberdade para o indígena ante o escravismo da sociedade colonial íbero-americana. 148  


            As reduções consistiam, como vimos, em aldeamentos de índios principalmente guarani -- habitantes de vasta região do continente sul-americano -- promovidos pelos jesuítas, em terras concedidas pelo governo espanhol. Esses aldeamentos reuniam diversas pequenas aldeias antes espalhadas por um dado território. Vinculavam-se diretamente à coroa espanhola. Os índios, considerados livres pelos reis de Espanha, subordinavam-se diretamente a estes.  Essa foi a forma que os jesuítas encontraram para assegurar a liberdade dos índios, questionada pelos espanhóis, que se achavam no direito de capturá-los quando os encontravam nos bosques. Os reis de Espanha haviam se comprometido com o papa a difundir a fé cristã no Novo Mundo. Assim, arcavam com a despesa de manutenção dos padres no trabalho missionário, mas também cobravam  impostos  das reduções em contrapartida. 

            As reduções, em que só se falava o guarani 149 (os jesuítas se orgulham de ter contribuído assim para manter essa língua viva), eram comunidades fechadas aos europeus. Não lhes era permitido o acesso, a não ser com autorização expressa da autoridade religiosa (entrada de comerciantes ambulantes, por exemplo). A esse respeito afirma Lugon:

As fronteiras das reduções mantiveram-se fechadas aos governadores e funcionários, assim como aos simples colonos espanhóis, fora das visitas oficiais em que aqueles eram recebidos com todas as  honras, como representantes do rei. (...) Os governadores do Paraguai teriam vantagem, por exemplo,em atravessar o território da República Guarani quando desembarcavam no Brasil à sua chegada de  Espanha. Mas a passagem era "expressamente proibida, sob penas rigorosas, mesmo aos  governadores" 150.
                                                                                                                                                        
            Por não ter respeitado essa proibição, o Governador Luis de Cespedes y Xeria foi obrigado a se justificar  perante as autoridades. 

            A forma de atrair os indígenas para as reduções, conforme uma estratégia pré-definida pelos superiores dos missionários, era conquistar o apoio primeiro dos caciques, chefes do clã familiar, muitas vezes obtido com presentes-- um machado de ferro, por exemplo. Essa tática, de aliciar os caciques doando-lhes objetos de metal, foi usada igualmente pelos portugueses, que tinham o objetivo menos nobre da sua escravização. A música também exerceu um papel importante na atração dos guarani para as reduções, haja vista o gosto e sensibilidade deles para essa arte. 

            A finalidade das reduções, segundo os jesuítas, era tornar os índios seres humanos civilizados e bons cristãos.  A  Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola em 1534 e aprovada pelo papa Paulo III em 1540, contrapunha-se à Reforma protestante e buscava compensar a perda de fiéis do Catolicismo, decorrente desse movimento religioso, pela incorporação das populações nativas do Novo Mundo, que deviam ser arrancadas do paganismo.

            A vida das reduções estava toda condicionada pela religião. O dia começava com o toque de sino chamando o povo para a missa e as orações. Após o desjejum, as crianças iam para a escola e os adultos, para o campo, ao som de “flauta e tambor”; à tarde, ao regressar do campo, cantavam em coro suas canções de marcha” 151. Trabalhava-se também nas oficinas. As mulheres, em casa, dedicavam-se à fiação (p.194).  A jornada de trabalho era no máximo de oito horas. Mas “Em regra, os guaranis não trabalhavam mais de seis horas por dia” (p.189). Após o trabalho, os índios desfrutavam de seu lazer, dedicando-se à música, à dança, ao teatro e a folguedos diversos, em que se incluía até um jogo de bola que se jogava com os pés (futebol) (pp.208-211). Desfrutavam assim de “algumas horas livres para a vida familiar ao meio-dia e à tarde, e quase todo o dia de quinta-feira, de domingo e das datas festivas” (p. 202).  Uma dessas datas era a do santo padroeiro da redução.  Quando soava a hora do Ângelus vespertino, as crianças se reuniam “aos pés do grande cruzeiro” para cantar, “à guisa de oração, um cântico dedicado ao Anjo Gabriel.” (p. 201). O toque de sino também anunciava a hora de se recolher e o repouso. As patrulhas faziam então as suas rondas e mandavam entrar em casa os retardatários (p.201).

            Todos trabalhavam na redução, inclusive o seu corregedor e membros do conselho que a dirigia (p.190), mencionado mais adiante. Todos estavam  condicionados por uma imposição moral:  “'Aquele que não quer trabalhar não deve comer”. Mas valia também esta máxima: “Aquele que não pode trabalhar deve comer”. Por isso, “Os velhos, os doentes e os órfãos eram mantidos, como as viúvas, a expensas da comunidade”  (p.195). Pagava-se o trabalho realizado não em dinheiro mas sob a forma de prestação de serviços: “alojamento, com casa particular no momento do matrimônio, vestuário, alimento para os artesãos, objetos manufaturados para os agricultores, instrução da mocidade e sua colocação profissional, seguro-velhice, seguro-doença e acidente, sustento e manutenção das viúvas e órfãos etc.” (p.195-196). Não havia dinheiro nas reduções (p.153). “O trabalho não era uma mercadoria” (p. 197) 

             Quanto à disposição interior das reduções, ela “correspondia a um plano quase uniforme, estabelecido, em suas linhas gerais, desde o princípio” (p.71). Todas as reduções seguiam tal plano, na medida em que a natureza dos locais o permitisse (aliás, essa localização era escolhida cuidadosamente, levando-se em conta a fertilidade do solo, a estratégica para a defesa, a proximidade dos rios etc).  A redução implicava assim uma dada forma de utilização do espaço territorial, que se organizava em torno da igreja, na frente da qual se constituía uma praça.

             “A igreja formava o centro da cidade”. Uma grande praça quadrada era “cercada de pinheiros, palmeiras ou laranjeiras, e ornada de monumentos religiosos.” (...) “De costume, a estátua monumental do santo padroeiro dominava essa praça. Uma grande cruz erguia-se nos quatro cantos” (p.71). De um lado da praça, a Casa do Povo continha “grandes salas, oficinas, por vezes os celeiros públicos”. Na nova redução de Santo Inácio Mini (reconstruída, após o êxodo do Guairá, em território argentino, na margem esquerda do rio Paraná), a igreja “estava enquadrada, de um lado, pelo Colégio dos Padres, distinta da Casa do Povo, e pela Casa das Viúvas; do outro lado, pelo hospital e o cemitério” (p.71-72).  “O arsenal, o hospício dos estrangeiros e as casas particulares ocupavam as outras faces da praça. Nos fundos da igreja e do colégio estendia-se o jardim dos padres” (p. 72) (esse  jardim era uma horta para experiências de aclimatação, em favor das  hortas e pomares que todas as reduções possuíam) (p.123). A planta da redução de Santo Inácio Mini (v. mapa 4) localiza ainda o alojamento dos padres junto à igreja.





            Lacouture afirma que a Casa das Viúvas recolhia também as esposas repudiadas face à proibição da poligamia 152.  
           
             As habitações dos índios (“de pau a pique ou adobe” 153) localizavam-se em torno da praça, em ruas bem traçadas que se entrecruzavam formando ângulos retos. Uma inovação curiosa verificava-se aí: o espaço entre as habitações era coberto, oferecendo proteção aos transeuntes, tanto nos dias de sol como nos de chuva. Essas “galerias cobertas”, diz Lugon, espécie de passeios, de dois metros e meio de largura, erguidas um metro acima da calçada” (...) “construídas em madeira ou pedra, corriam ininterruptas, de uma casa para a outra. Podia-se, assim, atravessar toda a pequena cidade a pé enxuto, ao abrigo da chuva e, sobretudo, ao abrigo do sol” (p. 74)

            Nas reduções havia um conselho (um “cabildo”) formado pelos próprios índios, e eleito por eles, encarregado dos assuntos da sua cidade, tais como a ordem pública, a organização e direção dos trabalhos, o gerenciamento dos armazéns e a administração da justiça:

O conselho de cada redução compreendia o corregedor ou presidente, muitas vezes denominado cacique, o qual tinha às suas ordens um alguacil ou comissário administrativo; o teniente ou vice-presidente, dois alcaides, que eram também 'juízes em matéria criminal'; dois alcaides-- oficiais de polícia  que dirigiam o policiamento das ruas e dos campos; o fiscal e seu lugar-tenente, encarregado, entre outras coisas, de manter os registros de estado civil; enfim, quatro regedores ou conselheiros, assumindo diversos serviços e, eventualmente, assessores "cujo número é proporcional ao dos habitantes" 154   

            Lugon acrescenta que, em princípio, o corregedor era nomeado por cinco anos e só podia ser deposto pelo superior-geral da República (p.90). Afirma, com D. Gregório Funes, que não existia Código Civil nas reduções porque “para os índios, o direito de propriedade era por assim dizer desconhecido” (p.92). Mas existia Código Penal, incluído no Libro de Ordenes, que reunia todos os regulamentos, leis e costumes relativos às reduções (p. 92-93). Aliás, o direito penal era “de uma benignidade extrema”, se comparado ao dos países europeus da época (p.95). As penas eram brandas e não existia a pena de morte (p.94).
   
            Nessas missões os padres atuavam não só no plano espiritual mas também no temporal.  De um lado eles catequizavam os índios, ensinavam-lhes a doutrina cristã, batizavam, confessavam, ministravam a comunhão etc Achavam crucial essa assistência religiosa permanente em missões estáveis e não ambulantes, como no início do trabalho missionário, para evitar que os índios convertidos voltassem às crenças anteriores-- o que ocorria, segundo eles, quando não havia tal assistência. Mas os padres também davam uma assistência “material” aos índios, na medida em que eles lhes ensinavam ofícios, organizavam o trabalho e adotavam medidas para o desenvolvimento da sua agricultura. Os índios, até então seminômades, agora se fixavam em dado território; daí a importância da agricultura para prover o sustento da comunidade, o que significava uma mudança considerável em seu modo de vida. Os padres introduziram uma série de produtos, além daqueles tradicionalmente conhecidos pelos índios. Introduziram também técnicas agrícolas mais produtivas.  À sua chegada, os jesuítas tinham encontrado pequenas plantações de milho, mandioca, batata-doce e erva-mate, em estado selvagem. Introduziram a cultura do trigo, cevada, arroz, cana-de-açúcar, algodão, fumo. O cânhamo fornecia o pano necessário.” (p.123).  A erva-mate, nativa da região, era o artigo comercial de maior procura e mais lucrativo. Por isso, muito interessava aos colonos espanhóis, que escravizavam os índios para que a colhessem:

A escravatura desenvolvera-se no Paraguai, em grande parte, por causa das necessidades de colheita da erva-mate. Os índios ao serviço dos espanhóis morriam em massa, aos milhares, diz o Padre Montoya, nos trabalhos de colheita, em plena floresta sem alojamentos  nem outro alimento a não ser a erva, as raízes ou o próprio chá, estimulados pelos capatazes, chicoteados, mortos por motivo de infrações  fúteis” 155

            A agricultura anteriormente era relegada às mulheres, cabendo aos homens as atividades extrativas da caça e pesca, o que explicava o seu seminomadismo.

            Nas reduções jesuíticas também se desenvolveram atividades industriais.  Elas chegaram a implantar um conjunto de equipamentos industriais muito significativo para a época, que se revelou tão completo quanto o de qualquer nação européia nos séculos XVII e XVIII, e muito mais aperfeiçoado que o de outros países do Prata” (p. 134). Lugon afirma que a República Guarani “foi na época o único Estado industrial da América do Sul” (p.140). Cita o comentário de Montesquieu, em “O Espírito das Leis”, para quem a obra dos jesuítas no Paraguai já teria sido grandiosa se consistisse apenas no estabelecimento da indústria na região (p.140). Exemplos de atividades  industriais aí desenvolvidas: vestuário, construção civil, construção naval, serrarias, curtumes, usinas de açúcar e azeite, serralheria, forjas e fundições, fabricação de arados, grades etc, de carroças, de rosários e círios, cerâmica, extração de perfumes e remédios das plantas, fabricação de relógios, de instrumentos musicais, impressão de livros (p.135-137). Quanto a esta última atividade, diz Lugon que  “A primeira oficina de impressão de livros instalada no Prata foi, por iniciativa dos jesuítas, a da República Guarani, a fim de imprimir os livros em língua guarani” (p.138), os quais exigiam caracteres tipográficos especiais para transmitir as peculiaridades da pronúncia. “Um volume intitulado em espanhol “Temporal y eterno” saiu da imprensa de Loreto em 1705, depois um dicionário “ (p.138). Além de Loreto (a reconstruída), também possuíam oficinas tipográficas Santa Maria Maior, S. Xavier e Candelária (p.138). 

             Nas reduções, conforme Lugon, Todo o solo pertencia à comunidade e era indivisível” (p.168). As terras comuns chamavam-se “tupambae” (p.173). Todas as grandes plantações jamais deixaram de ser indivisas (p.177).   O gado também era propriedade comum (p.175) assim  como as construções públicas, as casas públicas, as casas de habitação, as oficinas etc (p. 182). Ninguém podia vender sua casa ou campo (p.183). Também os meios de transporte (barcos, canoas, carroças), além de fundições, moinhos, tanoarias, curtumes, minas etc (p.184). Segundo Bruno Garsch, citado por Lugon: "Toda a terra, as casas, o gado, assim como os meios de produção, pertenciam à comunidade constituída pela redução" (p. 170).                                                                                                                      

            Só tardiamente, na década de 40 do século XVIII, os padres passaram a referir-se aos lotes particulares, “abambae”. Visavam com isso não dar um argumento a mais aos “inimigos naturais de uma república indígena livre” (p. 116) (ameaças externas sempre pairavam sobre as reduções, por irem contra os interesses do sistema colonial (p.173)). Esses lotes, contudo, segundo Lugon, “não constituíam, absolutamente, uma propriedade privada” (p. 174). Os lotes eram concedidos aos índios quando se casavam, os quais, aliás, eram estimulados a casar bem cedo, em decorrência de razões morais: os rapazes entre 15 e 18 anos, as moças entre 14 e 16 (p.202). Os lotes que recebiam não podiam ser vendidos. Quando o marido morria, o lote revertia para a comunidade (p.174), sem que a viúva ou os filhos ficassem desamparados. O trabalho nele era regulamentado. A comunidade fornecia ao agricultor sementes, instrumentos de lavoura e animais de tiro (p. 174-175). Mas os guarani eram desinteressados da propriedade particular. 

            A  colheita era entregue nos armazéns públicos e depois distribuída conforme as necessidades (p.169). Os funcionários dos armazéns entregavam aos chefes de bairros a provisão de cereais para o mês, sendo a quantidade proporcional ao tamanho das famílias. Distribuía-se também carne e panos ou roupas (p.154). A Comuna era dona dos celeiros e armazéns (p.155). Realizava-se o comércio exterior, com Assunção e Buenos Aires. Havia também comércio entre as reduções. A comunidade era a única entidade capitalista (p. 164).

            Sobre as atividades artísticas desenvolvidas nas reduções, Lugon afirma que os  guarani eram “notavelmente dotados para a escultura, a pintura e, sobretudo, a música” (p.143).  Um dos mestres de música que tiveram foi o padre belga Jean Baes-- Vassaeus ou Vassaux, renomado na Europa, que fora músico da corte de Carlos V e de outros nobres. Ele morreu em Loreto em 1623. “Os guaranis aprenderam com o Padre Baes a notação musical mais perfeita da época. Eles conservaram e transmitiram preciosamente seus repertórios e composições pessoais.” (p.144)  ”Desde o tempo do Padre Baes, em cada redução foi criada uma escola de canto coral, música e dança” (p.144).  Os índios aprenderam a tocar todos os instrumentos de uma orquestra. As oficinas guaranis produziam tais instrumentos. “Já nos primeiros tempos, a menor das reduções tinha quatro organistas habilitados e músicos que se destacavam, por sua excelência, como tocadores de alaúde, flauta, espinheta, trombeta, fagote etc. 'Muitos europeus que ouviram a música dos índios garantiram não ser ela inferior à  das catedrais da Espanha'” (p.145). Quando  dois  padres  franceses “chegaram às missões em 1628, os neófitos executaram em sua honra 'bailados com uma música a duas vozes, ao bom gosto da França'” (p.146)

            Quanto às outras manifestações artísticas, ”subsiste ainda uma série de obras esculpidas pelos guaranis mas, aparentemente, poucas ou nenhumas pinturas. As cores utilizadas eram, de resto, de má qualidade. As pinturas originais, que poderiam ter subsistido, foram recobertas por amadores” (p.147). De qualquer forma na opinião do padre Ripario --um artista muito culto segundo Lugon-- a pintura dos guarani era excelente (p.148).  “As estátuas de madeira e pedra, os afrescos e os quadros que subsistem imitam muitas vezes o estilo grego antigo ou do Renascimento.” (p.148) 

            A música (ocidental, européia) ocupou assim, desde o início, um papel muito importante. Ela auxiliou a concretização do projeto jesuítico na medida em que serviu para atrair os indígenas, sensíveis ao seu encanto, e para mantê-los vinculados a tal projeto. Os padres ensinaram música para os índios, capacitando-os em diversos instrumentos de corda e sopro, importados da Europa, que chegaram a ser fabricados nas próprias reduções. O canto e a dança, atividades que lhe estão relacionadas, também foram importantes na vida cotidiana das reduções, sendo de se destacar, relativamente ao canto, a formação de coros pelos índios, e sua participação nos ofícios religiosos.

            A propósito desse tópico, afirma Lacouture: O que os ligava mais fortemente à pregação dos padres era o ritual cristão, suas pompas, seus ouros, seus odores e a música, sobretudo a música, da qual eram entusiastas” 156. Para ele, “a música, sob sua forma sagrada, desempenhou um papel essencial na 'domesticação' dos guaranis”. Dedicavam-se com entusiasmo ao “ritual cantado, a todas as formas de devoção vocal”.  Um grande músico da época, Domenico Zipoli, “também jesuíta e rival de Vivaldi”,  compôs cantatas para eles (aproveitadas na trilha sonora do documentário de Sílvio Back-- “República Guarani”, de 1986). “Os índios ficavam fascinados com os ofícios cantados onde suas vozes faziam maravilhas, e vários missionários deveram seu prestígio ao seu talento de flautistas ou violinistas, como os padres Vaisseau e Berger157.

            Quanto à pintura praticada pelos índios, embora recebesse referência elogiosa dos padres, nada ficou para a posteridade, dada a má qualidade da tinta que usaram 158.  Mas no campo da escultura e cerâmica, muitas peças permaneceram, podendo ser contempladas ainda hoje. Sobre o assunto, assim se manifesta Lemos:  “(...) os guaranis assimilaram técnicas européias de pintura, escultura e música, criando formas de arte bastante originais, embora não fossem autenticamente nativas. Ao contato com os jesuítas, essas populações aculturaram-se, e sua arte utilizava não só técnicas importadas, mas também temas religiosos cristãos.159

            Afirma ainda o mesmo autor:

Sabe-se que os indígenas das reduções realizaram obras de pintura, que, infelizmente, se perderam. (...) A cerâmica e a escultura conservaram-se melhor. O Museu das Missões, nas ruínas de São Miguel, abriga um bom número de imagens e fragmentos arquitetônicos  recolhidos em toda a região missioneira.  Curiosamente, é claro que pela presença jesuítica, a estatuária mostra influência do Renascimento, que, por sua vez, reviveu padrões estéticos do classicismo grego. Contudo, esses elementos europeus foram filtrados por uma óptica selvagem e tropical, adquirindo o delicado sabor de floresta civilizada, do homem puro que só recebeu da sociedade ocidental o melhor de seus valores 160 .

            Com relação à arquitetura, as reduções chegaram a produzir obras imponentes como a igreja de São Miguel, no Rio Grande do Sul, cujas ruínas permitem avaliar o grau de desenvolvimento alcançado nessa área. Trata-se do “único remanescente da arquitetura missioneira no Brasil” 161.  Todavia as igrejas nada tinham de contribuição autóctone: “(...) as igrejas missioneiras representam pura manifestação da cultura européia 162.

            Conforme Toledo, nas “construções de maior vulto, os jesuítas seguiam as normas dos tratadistas do Renascimento” (caso da igreja de São Miguel, projetada pelo jesuíta italiano João Batista Primoli).  Segundo esse autor, há um “constraste da arte missionária com a arquitetura das igrejas monumentais (...) Na estatuária é que vamos encontrar as manifestações mais originais no que respeita à arte nativa 163.



146 Lugon, Clovis- “A República...”, op cit, p. 340
147 Lacouture, Jean- “Os Jesuítas”, op cit, p.452
148 Kern, Arno Alvarez-- “Missões: uma utopia política”. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982- p. 263. A “situação de fronteira” mencionada pelo autor refere-se ao papel político desempenhado pelas missões  contra o expansionismo português. 
149 Lacouture, Jean- “Os Jesuítas”, op cit, p.427
150 Lugon, Clovis- “A República...”, op cit, p. 115
151 Id., ibid., p. 193.  Pela maior comodidade, as páginas das próximas citações dessa obra constarão do próprio texto, e não destas  notas.
152 Lacouture, Jean- “Os Jesuítas”, op cit, p.456
153 “Enciclopédia Mirador Internacional”, op cit, v. 11, p. 5532
154 Lugon, Clovis- “A República...”, op cit, p.89
155 Lugon, Clovis- “A República...”, op cit, p.126
156 Lacouture, Jean- “Os Jesuítas”, op cit, p.455
157 Id., ibid., p. 455-456. Para Lacouture, Sílvio Back é o “promotor da 'república dos guaranis' ” e seu documentário denuncia o que Back  chama de “a ocupação ideológica do indígena”, “consequência do 'encontro entre dois pensamentos mágicos separados por um Atlântico de diferenças na América do século XVII, encontro que produz uma das mais prodigiosas experiências da história humana: a teocracia barroca jesuítico-guarani' ” (p. 459-460).
158 “Enciclopédia Mirador Internacional”, op cit, v. 11, p. 5533
159 Lemos, Carlos A.C.-- “Monumentos do Sul”, p. 314-333,   in  “Arte no Brasil”. São Paulo: Abril Cultural, 1979, v.1- p.320-321
160 Id., ibid., p. 321 
161 Id., ibid., p. 319  
162 Id., ibid., p. 317
163 Toledo, Benedito Lima de-- “Do séc. XVI ao início do séc. XIX: maneirismo, barroco e rococó”, p. 89-319, in “História Geral da Arte no Brasil”-Walter Zanini (org)- São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983- v.I, p.139 (“A civilização barroca. Anexo. O episódio das missões jesuíticas.”)

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