As reduções: caracterização de toda a experiência
É possível
caracterizarmos rapidamente as reduções, levando em conta toda essa experiência
histórica e o conhecimento acumulado que temos sobre elas, exposto nos
trabalhos mais importantes sobre o assunto e apresentados sinteticamente no
livro de C.Lugon- “A República 'Comunista' Cristã dos Guaranis” nos
quais se apoia, citando-os extensamente. Independentemente de aceitarmos ou não
a interpretação do autor sobre o caráter da República Guarani, é inegável a
utilidade da obra como repositório de informações preciosas sobre as reduções,
oriundas de fontes de difícil acesso, muitas vezes.
Para Lugon,
a República Guarani foi uma república de índios livres, de caráter cristão e
comunista. Segundo ele,
No começo do século XVII, quando foi
criada a República Guarani, a idéia de uma organização geral da sociedade na base de comunidades
pairava no ambiente. Reatavam-se pequenas experiências comunitárias, isoladas e perdidas no meio de uma sociedade
individualista. Foi a época em que estiveram
em voga as utopias comunistas com base no humanismo cristão. A Utopia de Thomas
Morus e a Cidade do Sol de
Campanella foram apenas dois dos exemplos mais célebres 146.
Os fundadores da
República Guarani podem ter sido influenciados por tais idéias ao buscar
concretizar seu projeto entre os guarani do Novo Mundo.
Para Lacouture, todavia, o projeto das reduções
inspirou-se muito menos nos modelos
estrangeiros do que nas tradições do continente (coletivismo dos incas) e
guaranis, embora afirme que o sistema de caráter coletivista, ou melhor,
comunitário que os padres impuseram aos índios sobre tais tradições seja o “seu
sistema de organização produtivista europeu”, inspirado nos grandes
mosteiros da Idade Média 147.
Estavam coerentes com as tradições guaranis a flexibilidade da organização
social, o equilíbrio entre a autoridade do cacique e as responsabilidades do cabildo,
o igualitarismo e a proteção da família nuclear, embora as reduções
contrariassem algumas delas (o seminomadismo, o individualismo, “a
espontaneidade indolente, ao sabor das necessidades”, que conflitava com “o trabalho como lei da
cidade”) (p.437).
Lacouture contesta o
caráter socialista ou comunista do Estado jesuíta. Afirma que se trata de uma
impropriedade assim qualificá-lo. As reduções, que tinham uma certa autonomia administrativa, e
mais tarde também econômica e militar, dependiam de Madri e de Roma. Na realidade tratava-se de “uma confederação
de teocracias cooperativistas autônomas” tão pouco independentes que quando
“pretenderam afirmar sua existência diante de um tratado injusto (o
tratado de 1750) que as destinava à desintegração, foram desmembradas e
dispersas” (p.440). Por outro lado, as
reduções recebiam apoio de “centros capitalistas” representados pelos
colégios jesuítas, localizados em Buenos Aires , Córdoba, Assunção e Santa Fé, que
eram entidades poderosas economicamente, verdadeiros latifúndios (em
decorrência das doações ou compras de
terras), os quais inclusive empregavam escravos negros (p.441).
Também Kern questiona a
influência de modelos apriorísticos, incluindo aquí os da própria América, quando se refere às trinta
reduções jesuíticas que se consolidaram e prosperaram (“definitivamente estabelecidas” no
período que se inicia “com a derrota dos bandeirantes paulistas, em 1641” , e vai até 1707, quando “é fundada a última
das povoações missioneiras, no Rio Grande do Sul”):
A
análise dos Trinta
Povos como um
todo, ao contrário do que já
se tentou provar, não confirma
as hipóteses de ter sido a sua organização política uma unidade estatal
independente, nem possuir modelos
anteriores que possam ter servido como projeto inicial. A regularidade do plano
das Missões, com as ruas
paralelas e sua praça central
com a igreja, seguia a tradição das cidades espanholas,
enquanto a organização social interna das casas comunais obedecia aos costumes
da tradição indígena dos
guaranis. Análise crítica das diversas hipóteses mostra que os modelos
propostos (a “Cidade do Sol”, a
“Utopia”, o Império Incaico, as Reduções jesuíticas ou franciscanas anteriores, etc) não se sustentam
plenamente nas fontes documentais, mas apenas em semelhanças ou aparências fortuitas, não sendo de muita utilidade do
ponto de vista político. Antes de tudo uma obra de circunstância, a organização política dos Trinta Povos
é originária de uma efetiva adaptação da legislação
e costumes espanhóis à cultura dos guaranis, bem como a uma situação de
fronteira. É, portanto, o
resultado de um processo histórico e não de modelos apriorísticos. A utopia
política existente foi
estabelecida após a sua implantação, ao criar um espaço de liberdade para o
indígena ante o escravismo da
sociedade colonial íbero-americana. 148
As reduções
consistiam, como vimos, em aldeamentos de índios principalmente
guarani -- habitantes de vasta região do continente sul-americano -- promovidos
pelos jesuítas, em terras concedidas pelo governo espanhol. Esses aldeamentos
reuniam diversas pequenas aldeias antes espalhadas por um dado território.
Vinculavam-se diretamente à coroa espanhola. Os índios, considerados livres
pelos reis de Espanha, subordinavam-se diretamente a estes. Essa foi a forma que os jesuítas encontraram
para assegurar a liberdade dos índios, questionada pelos espanhóis, que se
achavam no direito de capturá-los quando os encontravam nos bosques. Os reis de
Espanha haviam se comprometido com o papa a difundir a fé cristã no Novo Mundo.
Assim, arcavam com a despesa de manutenção dos padres no trabalho missionário,
mas também cobravam impostos das reduções em contrapartida.
As
reduções, em que só se falava o guarani 149
(os jesuítas se orgulham de ter contribuído assim para manter essa língua
viva), eram comunidades fechadas aos europeus. Não lhes era permitido o
acesso, a não ser com autorização expressa da autoridade religiosa (entrada de
comerciantes ambulantes, por exemplo). A esse respeito afirma Lugon:
As
fronteiras das reduções mantiveram-se fechadas aos governadores e
funcionários, assim como aos simples
colonos espanhóis, fora das visitas oficiais em que aqueles eram recebidos com
todas as honras, como representantes do rei. (...) Os
governadores do Paraguai teriam vantagem, por exemplo,em atravessar o território da República Guarani quando
desembarcavam no Brasil à sua chegada de Espanha.
Mas a passagem era "expressamente proibida, sob penas rigorosas, mesmo aos governadores" 150.
Por não ter respeitado
essa proibição, o Governador Luis de Cespedes y Xeria foi obrigado a se
justificar perante as autoridades.
A forma de
atrair os indígenas para as reduções, conforme uma estratégia pré-definida
pelos superiores dos missionários, era conquistar o apoio primeiro dos
caciques, chefes do clã familiar, muitas vezes obtido com presentes-- um
machado de ferro, por exemplo. Essa tática, de aliciar os caciques doando-lhes
objetos de metal, foi usada igualmente pelos portugueses, que tinham o objetivo
menos nobre da sua escravização. A música também exerceu um papel importante na
atração dos guarani para as reduções, haja vista o gosto e sensibilidade deles
para essa arte.
A finalidade
das reduções, segundo os jesuítas, era tornar os índios seres humanos
civilizados e bons cristãos. A Companhia de Jesus, fundada por Inácio de
Loyola em 1534 e aprovada pelo papa Paulo III em 1540, contrapunha-se à Reforma
protestante e buscava compensar a perda de fiéis do Catolicismo, decorrente
desse movimento religioso, pela incorporação das populações nativas do Novo
Mundo, que deviam ser arrancadas do paganismo.
A vida das
reduções estava
toda condicionada pela religião. O dia começava com o toque de sino chamando o
povo para a missa e as orações. Após o desjejum, as crianças iam para a escola
e os adultos, para o campo, ao som de “flauta e tambor”; à tarde, ao
regressar do campo, “cantavam em coro suas canções de
marcha” 151. Trabalhava-se também
nas oficinas. As
mulheres, em casa, dedicavam-se à fiação (p.194). A jornada de trabalho era no máximo de oito
horas. Mas “Em regra, os guaranis não trabalhavam mais
de seis horas por dia” (p.189). Após o trabalho, os índios
desfrutavam de seu lazer, dedicando-se à música, à dança, ao teatro e a
folguedos diversos, em que se incluía até um jogo de bola que se jogava com os
pés (futebol) (pp.208-211). Desfrutavam assim de “algumas horas livres para
a vida familiar ao meio-dia e à tarde, e quase todo o dia de quinta-feira, de
domingo e das datas festivas” (p. 202).
Uma dessas datas era a do santo padroeiro da redução. Quando soava a hora do Ângelus vespertino, as crianças se reuniam “aos pés
do grande cruzeiro” para cantar, “à guisa de oração, um cântico dedicado
ao Anjo Gabriel.” (p. 201). O toque de sino também anunciava a hora de se
recolher e o repouso. As patrulhas faziam então as suas rondas e mandavam
entrar em casa os retardatários (p.201).
Todos trabalhavam na
redução, inclusive o seu corregedor e membros do conselho que a dirigia (p.190),
mencionado mais adiante. Todos estavam
condicionados por uma imposição moral:
“'Aquele que não quer trabalhar não deve comer”. Mas valia também
esta máxima: “Aquele que não pode trabalhar deve comer”. Por isso, “Os
velhos, os doentes e os órfãos eram mantidos, como as viúvas, a expensas da
comunidade” (p.195). Pagava-se o
trabalho realizado não em dinheiro mas sob a forma de prestação de serviços: “alojamento,
com casa particular no momento do matrimônio, vestuário, alimento para os
artesãos, objetos manufaturados para os agricultores, instrução da mocidade e
sua colocação profissional, seguro-velhice, seguro-doença e acidente, sustento
e manutenção das viúvas e órfãos etc.” (p.195-196). Não havia dinheiro nas
reduções (p.153). “O trabalho não era uma mercadoria” (p. 197)
Quanto à disposição
interior das reduções, ela “correspondia a um plano quase uniforme,
estabelecido, em suas linhas gerais, desde o princípio” (p.71). Todas as
reduções seguiam tal plano, na medida em que a natureza dos locais o permitisse
(aliás, essa localização era escolhida cuidadosamente, levando-se em conta a
fertilidade do solo, a estratégica para a defesa, a proximidade dos rios
etc). A redução implicava assim uma dada forma de utilização do
espaço territorial, que se organizava em torno da igreja, na frente da qual se
constituía uma praça.
“A igreja formava o centro da cidade”.
Uma grande praça quadrada era “cercada de pinheiros, palmeiras ou
laranjeiras, e ornada de monumentos religiosos.” (...) “De costume, a
estátua monumental do santo padroeiro dominava essa praça. Uma grande cruz
erguia-se nos quatro cantos” (p.71). De um lado da praça, a Casa do Povo
continha “grandes salas, oficinas, por vezes os celeiros públicos”. Na
nova redução de Santo Inácio Mini (reconstruída, após o êxodo do Guairá, em território
argentino, na margem esquerda do rio Paraná), a igreja “estava enquadrada,
de um lado, pelo Colégio dos Padres, distinta da Casa do Povo, e pela Casa das
Viúvas; do outro lado, pelo hospital e o cemitério” (p.71-72). “O arsenal, o hospício dos estrangeiros e
as casas particulares ocupavam as outras faces da praça. Nos fundos da igreja e
do colégio estendia-se o jardim dos padres” (p. 72) (esse jardim era uma horta para experiências de
aclimatação, em favor das hortas e
pomares que todas as reduções possuíam) (p.123). A planta da redução de Santo
Inácio Mini (v. mapa 4) localiza ainda o alojamento dos padres junto à igreja.
Lacouture afirma que a
Casa das Viúvas recolhia também as esposas repudiadas face à proibição da
poligamia 152.
As habitações dos índios (“de pau a pique
ou adobe” 153) localizavam-se em
torno da praça, em ruas bem traçadas que se entrecruzavam formando ângulos
retos. Uma inovação curiosa verificava-se aí: o espaço entre as habitações era
coberto, oferecendo proteção aos transeuntes, tanto nos dias de sol como nos de
chuva. Essas “galerias cobertas”, diz Lugon, “espécie de passeios, de dois metros e meio de largura, erguidas um
metro acima da calçada” (...) “construídas em madeira ou pedra, corriam
ininterruptas, de uma casa para a outra. Podia-se, assim, atravessar toda a
pequena cidade a pé enxuto, ao abrigo da chuva e, sobretudo, ao abrigo do sol”
(p. 74)
Nas reduções havia um
conselho (um “cabildo”) formado pelos próprios índios, e eleito por eles,
encarregado dos assuntos da sua cidade, tais como a ordem pública, a
organização e direção dos trabalhos, o gerenciamento dos armazéns e a
administração da justiça:
O
conselho de cada redução compreendia o corregedor ou presidente, muitas vezes denominado cacique, o qual tinha às suas
ordens um alguacil ou comissário administrativo; o teniente ou vice-presidente, dois alcaides, que
eram também 'juízes em matéria criminal'; dois alcaides-- oficiais de polícia que dirigiam o policiamento das ruas e dos
campos; o fiscal e seu lugar-tenente, encarregado,
entre outras coisas, de manter os registros de estado civil; enfim, quatro
regedores ou conselheiros,
assumindo diversos serviços e, eventualmente, assessores "cujo número é
proporcional ao dos
habitantes" 154
Lugon acrescenta que,
em princípio, o corregedor era nomeado por cinco anos e só podia ser deposto
pelo superior-geral da República (p.90). Afirma, com D. Gregório Funes, que não
existia Código Civil nas reduções porque “para os índios, o direito de
propriedade era por assim dizer desconhecido” (p.92). Mas existia Código
Penal, incluído no Libro de Ordenes, que reunia todos os regulamentos,
leis e costumes relativos às reduções (p. 92-93). Aliás, o direito penal era “de
uma benignidade extrema”, se comparado ao dos países europeus da época
(p.95). As penas eram brandas e não existia a pena de morte (p.94).
Nessas
missões os padres atuavam não só no plano espiritual mas também no
temporal. De um lado eles catequizavam
os índios, ensinavam-lhes a doutrina cristã, batizavam, confessavam,
ministravam a comunhão etc Achavam crucial essa assistência religiosa
permanente em missões estáveis e não ambulantes, como no início do trabalho
missionário, para evitar que os índios convertidos voltassem às crenças anteriores--
o que ocorria, segundo eles, quando não havia tal assistência. Mas os padres
também davam uma assistência “material” aos índios, na medida em que eles lhes
ensinavam ofícios, organizavam o trabalho e adotavam medidas para o
desenvolvimento da sua agricultura. Os índios, até então seminômades, agora se
fixavam em dado território; daí a importância da agricultura para prover
o sustento da comunidade, o que significava uma mudança considerável em seu
modo de vida. Os padres introduziram uma série de produtos, além daqueles
tradicionalmente conhecidos pelos índios. Introduziram também técnicas
agrícolas mais produtivas. “À sua chegada, os jesuítas tinham encontrado
pequenas plantações de milho, mandioca, batata-doce e erva-mate, em estado
selvagem. Introduziram a cultura do trigo, cevada, arroz, cana-de-açúcar,
algodão, fumo. O cânhamo fornecia o pano necessário.” (p.123). A erva-mate, nativa da região, era o artigo
comercial de maior procura e mais lucrativo. Por isso, muito interessava aos
colonos espanhóis, que escravizavam os índios para que a colhessem:
A
escravatura desenvolvera-se no Paraguai, em grande parte, por causa das
necessidades de colheita da erva-mate.
Os índios ao serviço dos espanhóis morriam em massa, aos milhares, diz o Padre Montoya, nos trabalhos de colheita, em
plena floresta sem alojamentos nem
outro alimento a não ser a erva, as raízes
ou o próprio chá, estimulados pelos capatazes, chicoteados, mortos por motivo
de infrações fúteis” 155
A
agricultura anteriormente era relegada às mulheres, cabendo aos homens as
atividades extrativas da caça e pesca, o que explicava o seu seminomadismo.
Nas
reduções jesuíticas também se desenvolveram atividades industriais. Elas chegaram a implantar um conjunto de
equipamentos industriais muito significativo para a época, que se revelou “tão completo quanto o de qualquer nação européia
nos séculos XVII e XVIII, e muito mais aperfeiçoado que o de outros países do
Prata” (p. 134). Lugon afirma que a República Guarani “foi na época o único
Estado industrial da América do Sul” (p.140). Cita o comentário de
Montesquieu, em “O Espírito das Leis”, para quem a obra dos jesuítas no
Paraguai já teria sido grandiosa se consistisse apenas no estabelecimento da
indústria na região (p.140). Exemplos de atividades industriais aí desenvolvidas: vestuário,
construção civil, construção naval, serrarias, curtumes, usinas de açúcar e
azeite, serralheria, forjas e fundições, fabricação de arados, grades etc, de carroças, de rosários e círios, cerâmica, extração de perfumes e remédios das
plantas, fabricação de relógios, de instrumentos musicais, impressão de livros
(p.135-137). Quanto a esta última atividade, diz Lugon que “A primeira oficina de impressão de livros
instalada no Prata foi, por iniciativa dos jesuítas, a da República Guarani, a
fim de imprimir os livros em língua guarani” (p.138), os quais exigiam
caracteres tipográficos especiais para transmitir as peculiaridades da
pronúncia. “Um volume intitulado em espanhol “Temporal y eterno” saiu
da imprensa de Loreto em 1705, depois um dicionário “ (p.138). Além de
Loreto (a reconstruída), também possuíam oficinas tipográficas Santa Maria
Maior, S. Xavier e Candelária (p.138).
Nas
reduções, conforme Lugon, ”Todo o solo
pertencia à comunidade e era indivisível” (p.168). As terras comuns
chamavam-se “tupambae” (p.173). Todas as grandes plantações
jamais deixaram de ser indivisas (p.177).
O gado também era propriedade comum (p.175) assim como as construções públicas, as casas públicas, as casas de habitação, as oficinas etc (p. 182). Ninguém podia vender sua casa ou campo (p.183). Também os meios de transporte (barcos, canoas, carroças), além de fundições, moinhos, tanoarias, curtumes, minas etc (p.184). Segundo Bruno Garsch, citado por Lugon: "Toda a terra, as casas, o gado, assim como os meios de produção, pertenciam à comunidade constituída pela redução" (p. 170).
Só tardiamente, na
década de 40 do século XVIII, os padres passaram a referir-se aos lotes
particulares, “abambae”. Visavam com isso não dar um argumento a
mais aos “inimigos naturais de uma república indígena livre” (p. 116)
(ameaças externas sempre pairavam sobre as reduções, por irem contra os
interesses do sistema colonial (p.173)). Esses lotes, contudo, segundo Lugon, “não
constituíam, absolutamente, uma propriedade privada” (p. 174). Os lotes
eram concedidos aos índios quando se casavam, os quais, aliás, eram estimulados
a casar bem cedo, em decorrência de razões morais: os rapazes entre 15 e 18
anos, as moças entre 14 e 16 (p.202). Os lotes que recebiam não podiam ser
vendidos. Quando o marido morria, o lote revertia para a comunidade (p.174),
sem que a viúva ou os filhos ficassem desamparados. O trabalho nele era
regulamentado. A comunidade fornecia ao agricultor sementes, instrumentos de
lavoura e animais de tiro (p. 174-175). Mas os guarani eram desinteressados da
propriedade particular.
A colheita era entregue nos armazéns públicos e
depois distribuída conforme as necessidades (p.169). Os funcionários dos
armazéns entregavam aos chefes de bairros a provisão de cereais para o mês,
sendo a quantidade proporcional ao tamanho das famílias. Distribuía-se também
carne e panos ou roupas (p.154). A Comuna era dona dos celeiros e armazéns
(p.155). Realizava-se o comércio exterior, com Assunção e Buenos Aires. Havia
também comércio entre as reduções. A comunidade era a única entidade
capitalista (p. 164).
Sobre as atividades
artísticas desenvolvidas nas reduções, Lugon afirma que os guarani eram “notavelmente dotados para a
escultura, a pintura e, sobretudo, a música” (p.143). Um dos mestres de música que tiveram foi o
padre belga Jean Baes-- Vassaeus ou Vassaux, renomado na Europa, que fora
músico da corte de Carlos V e de outros nobres. Ele morreu em Loreto em 1623. “Os
guaranis aprenderam com o Padre Baes a notação musical mais perfeita da época.
Eles conservaram e transmitiram preciosamente seus repertórios e composições
pessoais.” (p.144) ”Desde o tempo
do Padre Baes, em cada redução foi criada uma escola de canto coral, música e
dança” (p.144). Os índios aprenderam
a tocar todos os instrumentos de uma orquestra. As oficinas guaranis produziam
tais instrumentos. “Já nos primeiros tempos, a menor das reduções tinha
quatro organistas habilitados e músicos que se destacavam, por sua excelência,
como tocadores de alaúde, flauta, espinheta, trombeta, fagote etc. 'Muitos
europeus que ouviram a música dos índios garantiram não ser ela inferior à das catedrais da Espanha'” (p.145).
Quando dois padres
franceses “chegaram às missões em 1628, os neófitos executaram
em sua honra 'bailados com uma música a duas vozes, ao bom gosto da França'”
(p.146)
Quanto às outras
manifestações artísticas, ”subsiste ainda uma série de obras esculpidas
pelos guaranis mas, aparentemente, poucas ou nenhumas pinturas. As cores
utilizadas eram, de resto, de má qualidade. As pinturas originais, que poderiam
ter subsistido, foram recobertas por amadores” (p.147). De qualquer forma
na opinião do padre Ripario --um artista muito culto segundo Lugon-- a pintura
dos guarani era excelente (p.148). “As
estátuas de madeira e pedra, os afrescos e os quadros que subsistem imitam
muitas vezes o estilo grego antigo ou do Renascimento.” (p.148)
A música (ocidental,
européia) ocupou assim, desde o início, um papel muito importante. Ela auxiliou
a concretização do projeto jesuítico na medida em que serviu para atrair os
indígenas, sensíveis ao seu encanto, e para mantê-los vinculados a tal projeto.
Os padres ensinaram música para os índios, capacitando-os em diversos instrumentos
de corda e sopro, importados da Europa, que chegaram a ser fabricados nas
próprias reduções. O canto e a dança, atividades que lhe estão
relacionadas, também foram importantes na vida cotidiana das reduções, sendo de
se destacar, relativamente ao canto, a formação de coros pelos índios, e sua
participação nos ofícios religiosos.
A propósito desse tópico, afirma
Lacouture: ”O
que os ligava mais fortemente à pregação dos padres era o ritual cristão, suas
pompas, seus ouros, seus odores e a música, sobretudo a música, da qual eram
entusiastas” 156. Para ele, “a música, sob sua forma sagrada, desempenhou um papel essencial na
'domesticação' dos guaranis”. Dedicavam-se com entusiasmo ao “ritual
cantado, a todas as formas de devoção vocal”. Um grande músico da época, Domenico Zipoli, “também
jesuíta e rival de Vivaldi”, compôs
cantatas para eles (aproveitadas na trilha sonora do documentário de Sílvio
Back-- “República Guarani”, de 1986). “Os índios ficavam fascinados com os
ofícios cantados onde suas vozes faziam maravilhas, e vários missionários
deveram seu prestígio ao seu talento de flautistas ou violinistas, como os
padres Vaisseau e Berger” 157.
Quanto à pintura praticada
pelos índios, embora recebesse referência elogiosa dos padres, nada ficou para
a posteridade, dada a má qualidade da tinta que usaram 158.
Mas no campo da escultura e cerâmica, muitas peças permaneceram,
podendo ser contempladas ainda hoje. Sobre o assunto, assim se manifesta
Lemos: “(...) os guaranis assimilaram
técnicas européias de pintura, escultura e música, criando formas de arte
bastante originais, embora não fossem autenticamente nativas. Ao contato com os
jesuítas, essas populações aculturaram-se, e sua arte utilizava não só técnicas
importadas, mas também temas religiosos cristãos.”159
Afirma ainda o mesmo autor:
Sabe-se que os indígenas das reduções realizaram obras de pintura, que,
infelizmente, se perderam. (...) A cerâmica e a
escultura conservaram-se melhor. O Museu das Missões, nas ruínas de São Miguel, abriga um bom número de imagens
e fragmentos arquitetônicos recolhidos
em toda a região missioneira. Curiosamente, é claro que pela presença
jesuítica, a estatuária mostra influência do Renascimento,
que, por sua vez, reviveu padrões estéticos do classicismo grego. Contudo,
esses elementos europeus
foram filtrados por uma óptica selvagem e tropical, adquirindo o delicado sabor
de floresta civilizada, do homem puro que
só recebeu da sociedade ocidental o melhor de seus valores 160 .
Com relação à arquitetura, as
reduções chegaram a produzir obras imponentes como a igreja de São Miguel, no
Rio Grande do Sul, cujas ruínas permitem avaliar o grau de desenvolvimento
alcançado nessa área. Trata-se do “único remanescente da arquitetura
missioneira no Brasil” 161. Todavia as igrejas nada tinham de
contribuição autóctone: “(...) as igrejas missioneiras representam
pura manifestação da cultura européia” 162.
Conforme Toledo, nas “construções
de maior vulto, os jesuítas seguiam as normas dos tratadistas do Renascimento”
(caso da igreja de São Miguel, projetada pelo jesuíta italiano João Batista
Primoli). Segundo esse autor, há um “constraste
da arte missionária com a arquitetura das igrejas monumentais (...) Na
estatuária é que vamos encontrar as manifestações mais originais no que
respeita à arte nativa” 163.
146 Lugon,
Clovis- “A República...”, op cit, p. 340
147
Lacouture, Jean- “Os Jesuítas”, op cit, p.452
148 Kern,
Arno Alvarez-- “Missões: uma utopia política”. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1982- p. 263. A “situação de fronteira”
mencionada pelo autor refere-se ao papel político desempenhado pelas
missões contra o expansionismo
português.
149
Lacouture, Jean- “Os Jesuítas”, op cit, p.427
150 Lugon,
Clovis- “A República...”, op cit, p. 115
151 Id., ibid., p. 193. Pela maior comodidade, as páginas das próximas
citações dessa obra constarão do próprio texto, e não destas notas.
152
Lacouture, Jean- “Os Jesuítas”, op cit, p.456
153 “Enciclopédia Mirador
Internacional”, op cit, v. 11, p. 5532
154 Lugon,
Clovis- “A República...”, op cit, p.89
155
Lugon, Clovis- “A República...”, op cit, p.126
156
Lacouture, Jean- “Os Jesuítas”, op cit, p.455
157 Id.,
ibid., p. 455-456. Para
Lacouture, Sílvio Back é o “promotor da 'república dos guaranis' ” e seu
documentário denuncia o que Back chama
de “a ocupação ideológica do indígena”, “consequência do 'encontro entre
dois pensamentos mágicos separados por um Atlântico de diferenças na América do
século XVII, encontro que produz uma das mais prodigiosas experiências da
história humana: a teocracia barroca jesuítico-guarani' ” (p. 459-460).
158 “Enciclopédia Mirador
Internacional”, op cit, v. 11, p. 5533
159 Lemos, Carlos A.C.-- “Monumentos do
Sul”, p. 314-333, in “Arte no Brasil”. São Paulo: Abril Cultural,
1979, v.1- p.320-321
160 Id. ,
ibid., p. 321
161 Id. ,
ibid., p. 319
162 Id.,
ibid., p. 317
163 Toledo, Benedito Lima de-- “Do séc. XVI ao início do séc. XIX:
maneirismo, barroco e rococó”, p. 89-319, in “História Geral da Arte no
Brasil”-Walter Zanini (org)- São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983-
v.I, p.139 (“A civilização barroca. Anexo. O episódio das missões jesuíticas.”)
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