As primeiras reduções
Conforme
Montoya, em 1610 o Pe. Marcel de Lorenzana funda no atual Paraguai a redução de
Santo Inácio Guaçu, “distante 25 léguas de Assunção” 123.
Inicia assim “o trabalho apostólico na região” do (rio) Paraná 124. É nesse ano também que, mais ao
norte, ou melhor a nordeste os padres
italianos José Cataldino e Simão Maceta fundam a primeira redução no Guairá, no
território do atual estado do Paraná. Trata-se de Nossa Senhora de Loreto,
localizada à margem esquerda do rio Paranapanema, afluente do Paraná 125.
Lugon considera
Cataldino e Maceta os verdadeiros fundadores da República Guarani-- a expressão
que usa para designar toda essa experiência jesuítica sesquicentenária do Paraguai, conforme a sua interpretação--
e não o padre Lorenzana, pois a fundação definitiva da redução a cargo deste jesuíta
só ocorreria em 1611 ou 1612, enquanto Loreto foi fundada em julho de 1610 126. O mesmo autor atribui ainda aos dois
jesuítas o mérito de terem “concebido o plano geral da futura república
cristã” 127. Em outra passagem
afirma: ”Os fundadores da República Guarani, os Padres Cataldino e Maceta,
mostraram-se plenamente conscientes das origens a que entendiam vincular-se
quando formaram 'o projeto de uma república cristã que restaurou nessa barbárie
os mais belos dias do cristianismo nascente' (Charlevoix)” 128.
Lacouture questiona
essa importância atribuída por Lugon aos padres Cataldino e Maceta na concepção
do empreendimento jesuíta. A respeito disso, diz o seguinte:
O projeto da
transformação dos guaranis (...) numa espécie de comunidade modelo, depois de
pô-los a salvo dos raptos permanentes de
mulheres e escravos, da servidão da encomienda e do seminomadismo, não nasceu na mente de um único jesuíta
ou funcionário colonial. Sob a égide do governador
Hernandarias e graças ao impulso de um grande jesuíta, Diego de Torres-Bollo, o
plano foi se formando no
local, progressivamente 129.
Lacouture
afirma que as ordenações baixadas pelo magistrado Francisco de Alfaro, de 1611
(inspirado por Torres), foram fundamentais para a existência das reduções. Ele
assim as resume:
a)
Proibição de toda forma de escravidão e de encomienda para os índios
convertidos.
b)
Reagrupamento das tribos em aldeias fixas dotadas de um cacique e de um conselho municipal autônomo, o cabildo.
c) Proibição de espanhóis,
portugueses, negros e mestiços penetrarem nas comunidades 130.
O mesmo autor afirma ainda que anteriormente, em 1º de maio de 1609, o
preposto geral Cláudio Aquaviva (“quarto sucessor de Loyola”), de Roma,
enviara aos padres de Assunção instrução sobre o comportamento dos jesuítas
quanto à fundação e à direção das missões dos índios (p. 442). Para Lacouture,
adotava-se uma concepção original de cristianismo, com uma visão ampla da
divindade, que permitia dialogar com outras culturas. Inspirados por esses
princípios trabalharam os cinco padres que ele considera fundadores, os pioneiros: Diego de
Torres-Bollo, provincial de Assunção, “que de certo modo foi o criador”;
Antonio Ruiz de Montoya, “o executor por excelência”; os dois italianos
Simone Maceta e Giuseppe Cataldino, que fundaram as primeiras reduções, Loreto
e San Ignacio; e finalmente Roque Gonzalez, “nascido de pais brancos no
Paraguai, que, apesar de algum excesso, foi o militante por excelência, até ser
assassinado, vítima de uma maquinação montada por um pajé” (p 442)
As
primeiras reduções foram fundadas nos últimos meses de 1609 e os primeiros de 1610, pelos
padres Cataldino e Maceta, graças ao estímulo de Diego de Torres-Bollo, que o
“general” Aquaviva nomeara
um ano antes provincial do Paraguai a fim de conferir-lhe uma maior liberdade
de iniciativa em relação à
hierarquia eclesiástica de Lima e de Buenos Aires. Torres era um especialista: alguns anos antes, ele inaugurara uma
experiência de reagrupamento de índios em Juni, às margens do lago Titicaca, inspirando-se ao mesmo tempo no
comunitarismo dos incas e nas tentativas feitas na Amazônia por Manuel da Nóbrega, o precursor de todos os jesuítas latino-americanos. Do fracasso de sua empreitada, ele concluiu que o sucesso dependia de duas
condições, o respeito pela cultura indígena
e o isolamento dos índios do meio colonial 131.
Segundo Charlevoix,
citado por Lugon, os padres Cataldino e Maceta só aceitaram sua missão,
depois
de o bispo e o governador lhes conferirem amplos poderes para reunirem todos os
cristãos em povoados, para os
governarem sem qualquer dependência das cidades e fortalezas vizinhas dos
lugares onde se estabelecessem, para
construírem igrejas em todas as localidades e para se oporem, em nome do rei, a quem quisesse sujeitar os novos
cristãos ao serviço pessoal dos espanhóis, sob qualquer que fosse o pretexto 132.
Para Lugon os
espanhóis, instalados próximos aos guarani do rio Paraná, sobretudo os de
Ciudad Real e Villa Rica, não perdiam ocasião alguma de arrebatar os índios que
encontrassem isolados nos campos, mesmo que vinculados às comunidades
assistidas pelos jesuítas 133. Por
isso, diz esse autor, os padres Cataldino e Maceta haviam
avançado bastante para leste, a
fim de fundar as primeiras reduções, em locais bem distantes dos espanhóis. Mas
afastando-se de um inimigo, acabaram aproximando-se de outro, os “habitantes
de São Paulo de Piratininga, pequena cidade da província do Brasil” 134.
Montoya
relata que os dois padres exerceram inicialmente “seus ministérios” junto às
populações de Ciudad Real e Villa Rica. Depois vão em busca dos índios mais
afastados. Seguem pelo Paranapanema, acompanhados por um intérprete de Ciudad
Real. Navegam por esse rio 10 ou 11 dias até encontrarem uma aldeia indígena em
suas margens, junto a um “grande arroio” chamado Pirapó, onde viviam cerca de
200 índios.
Ali
levantaram estes o estandarte da cruz, construíram uma pequena choça para
servir de igrejinha e lhe deram
por título o de Nossa Senhora de Loreto. Lá fizeram alto por alguns dias.
Tido,
porém, informes sobre a existência de gente ao longo daqueles rios, juntos
partiram os dois padres com o seu
companheiro. Era para que essa gente (...), que vivia esparramada em lugarejos, se reunisse em povoações
grandes. Acharam 25 aldeiazinhas e também algumas povoações com um número razoável de pessoas 135.
Os padres queriam assim reunir
toda essa gente em povoações maiores, quer dizer, queriam “reduzi-los”. Esse
relato ilustra bem a definição de “redução” dada por Montoya citada mais
adiante.
Os padres
Cataldino e Maceta recebem em 1609 instruções sobre a fundação de reduções por
parte do provincial padre Diego de Torres Bollo 136.
Este, por sua vez, “recebeu ordem de renunciar
inteiramente às missões ambulantes, a fim de estabelecer missões estáveis em
locais determinados e afastados das aglomerações coloniais.” Os padres
visavam com isso a “constituição de comunidades cristãs sólidas e duráveis.
Era preciso, por conseguinte, fixar os índios em redor de uma igreja. Importava
também isolar os novos convertidos, mantê-los separados dos coloniais
corrompidos.” 137
Os mesmos
padres fundam no ano seguinte uma segunda redução, a de Santo Inácio Menor,
estabelecida a quatro léguas de Loreto 138. Essas duas primeiras reduções, situadas na margem esquerda do Paranapanema,
passarão a reunir mais de 2000 famílias 139.
Em
1612 chegam outros dois jesuítas para
atuar no Guairá: Antonio Ruiz de Montoya e Martin de Urtasun. Com esse
reforço, Loreto fica a cargo de Maceta e Montoya enquanto Santo Inácio, de
Cataldino e Martin. Fundam “escola de ler e escrever” para crianças e
jovens e fixam “o tempo de uma hora pela manhã e de outra à tarde, para que
todos os adultos viessem à catequese ou doutrina”, que também era ensinada nos
sermões dominicais 140.
Mas o padre
Martin vem a falecer logo depois 141. O padre Montoya (1585-1652), porém, teria um papel muito importante nos
anos vindouros, particularmente quanto ao desenvolvimento e expansão do
trabalho missionário, formando novas reduções. A partir de 1620 torna-se o
Superior Geral das reduções do Paraguai.
Além disso, é autor de uma “Arte e vocabulário da língua guarani” e um relato
do início da experiência reducional, até 1639, data de sua publicação em Madri
(“Conquista Espiritual”). Esse livro serviu para denunciar, junto à sede
da Corte espanhola, na qual se apresentou o jesuíta peruano, os crimes, segundo
ele, praticados pelos paulistas contra as reduções, no afã de capturar os
índios catequizados.
O objetivo
da vida missionária de Montoya foi, em suas palavras, buscar os índios
selvagens “para agregá-los ao aprisco da Santa Igreja e ao serviço de Sua
Majestade” 142 (note-se que a
finalidade religiosa coexistia com a política). Ele visava agregá-los em reduções, que assim definiu:
(...)
chamamos 'Reduções' aos 'povos' ou
povoados de índios que, vivendo à sua antiga usança em selvas, serras e vales, junto a arroios
escondidos, em três, quatro ou seis casas apenas, separados uns dos outros em questão de léguas duas,
três ou mais, 'reduziu-os' a diligência dos padres a povoações não
pequenas e à vida política (civilizada) e humana, beneficiando algodão
com que se vistam, porque em
geral viviam na desnudez, nem ainda cobrindo o que a natureza ocultou 143.
Como diz
Lacouture, a definição de Montoya destaca proibição (pela vida civilizada) da
nudez, mas não fala da antropofagia, poligamia ou ociosidade 144,
outras características dos índios.
Ainda
segundo esse autor, o termo ”redução”
tem também um sentido militar, nos dicionários latinos. Por isso, ”as
primeiras cartas dos jesuítas designavam as futuras reduções como oppida
christianorum-- fortalezas cristãs--
termo essencialmente militar” (p.436) .
Em suma, a
redução (na época denominada doctrina ou paróquia, pueblo ou
aldeamento (p.435), é “uma espécie de cadinho coletivo onde se
moldam seres civilizados; uma forja cuja finalidade é socializar e converter,
ao mesmo tempo uma fortaleza.” (p.436)
Não é de
estranhar esse caráter militar das reduções considerando a vida pregressa
(antes da conversão) e as concepções do fundador da Companhia de Jesus, com sua
ênfase na disciplina...
As reduções
de Loreto e Santo Inácio foram as que mais duraram dentre aquelas que se
estabeleceram no Guairá: pouco mais de vinte anos. Posteriormente, criaram-se
outras doze, segundo Schallenberger, se incluirmos a de Santa Maria, que ele
considera não da região do Guairá mas do
(rio) Paraná, coerente com Montoya, que fala em treze reduções estabelecidas no
Guairá 145. Chmyz,
entretanto, aponta quinze, acrescentando treze àquelas duas primeiras. Essas outras reduções foram
criadas após 1622. Delas, as que mais duraram, não chegaram a durar dez anos.
Embora essa
experiência reducional do Guairá fosse breve, é importante pelo seu
pioneirismo, por representar o esforço inicial para a implantação do projeto
jesuítico. Simultaneamente ao Guairá, ele se iniciara também em outra região,
mais ao sul do continente, entre ambas as margens dos rios Paraná e Uruguai
(territórios atuais do Paraguai, Argentina e Brasil- cf. mapa nº 9). No total,
a experiência abrange um período superior a
cento e cinquenta anos, desde a fundação da primeira redução (1610) até
a expulsão dos jesuítas dos domínios
coloniais de Espanha (1767) e a partida dos últimos padres no ano
seguinte.
123 Montoya, Pe. Antonio Ruiz--
“Conquista ...”, op cit, p.35
124 Schallenberger, Erneldo-- “O
Guairá...”, op cit, p. 86
125 Schallenberger, Erneldo-- “O
Guairá...”, op cit, p. 66; Chmyz, Igor-- “Arqueologia e História...”, op cit,
p. 76-77. Gadelha, in “As Missões...”, op cit, afirma
que os índios do Guairá já estavam “encomendados aos vizinhos espanhóis
desde os tempos de Irala”. Mas esses índios, “já aculturados”, não
contavam com assistência religiosa, razão por que são enviados para a região
(onde antes “pregara o padre Manuel Ortega por doze anos”) os padres
José Cataldino e Simão Maceta. A autora não atribui a fundação de Santo Inácio
e Nossa Senhora de Loreto a esses dois jesuítas, pois, segundo ela, eles já
encontraram, ao chegar, esses “dois povoados de índios encomendados”. “Ao contrário dos outros curas, porém,
tomariam resolutamente a defesa da liberdade do índio, opondo-se à opressão do
serviço pessoal e às costumeiras malocas que espanhóis e portugueses faziam em
suas terras. Esta ação, até então inusitada por parte de sacerdotes
espanhóis, atrairia e chamaria a atenção dos índios, que se sentiam protegidos
sob a autoridade dos padres.” Assim, muitos caciques procurariam os padres
Cataldino e Maceta, pedindo proteção ou mesmo para se aldearem, inclusive, mais
tarde, “o famoso Tayaoba que, em
1626, seria convertido pelo padre Antonio Ruiz Montoya”) (Gadelha, Regina
Maria A.F.-- “As Missões...”, op cit, p.
211 e 229, nota 65).
126 Lugon,
Clovis- “A República...”, op cit, pp.35-36, nota 11
127 Id. ,
ibid., p.32
128
Id., ibid., p. 339. Segundo
Gadelha, os autores divergem quanto à questão de quem foi o verdadeiro fundador
das missões jesuíticas. Diz ela que para Carlos Leonhardt foi o padre Roque
Gonzalez, “dando forma orgânica às reduções e nelas introduzindo método e
organização.” Diz também que Jaime Cortesão “afirma terem os jesuítas
paraguaios copiado o sistema de organização das aldeias que a Companhia adotava
no Brasil”. E que Félix de Azara, Juan Francisco Aguirre e Blas Garay “insistem
no trabalho desenvolvido pelo franciscano Frei Luís Bolanõs”. A autora
conclui a nota assim: “Evidentemente, a estrutura das aldeias adotada pelos
jesuítas, no Paraguai, não era invenção deles, já que a própria legislação de
Felipe II, alusiva a povoamentos, em 1573, já ordenava, precisamente, qual
deveria ser a disposição das construções nas novas povoações. Assim, parece
mais lógico aceitar as palavras de Roque Gonzalez” (Gadelha,
Regina Maria A.F.-- “As Missões...”, op cit, nota 103, p. 233). Essas palavras eram as que Gonzalez escrevera em carta
ao padre Torres, citadas antes por Gadelha, nas quais afirmara, a propósito da
redução em que atuava, Santo Inácio Guaçu, que “Fué necesario construir este
pueblo desde sus fundamentos” e que, para assegurar uma vida mais cristã,
longe do pecado, decidira construir casas individuais para os indios, “a la
manera de los pueblos de españoles” (p.221-222). Assim Gadelha atribui o
pioneirismo das reduções não a Loreto e Santo Inácio Mini, no Guairá, mas a
Santo Inácio Guaçu, no Paraguai atual, iniciada pelo padre Lorenzano que Roque
Gonzalez substituiria posteriormente, introduzindo aí “disciplina e ordem,
reconstruindo a aldeia à maneira dos espanhóis” (p. 221).
133 Id.,
ibid., p. 45. Tais
comunidades não eram ainda as reduções. Segundo Lugon, “Os jesuítas só declaravam as
novas fundações no momento em que elas estavam consolidadas e em estado de
pagar imposto”. Cf. “A República...”, op cit, p.40, nota 17
134
Lugon, Clovis- “A República...”, op cit, p.46
135 Montoya, Pe. Antònio Ruiz--
“Conquista...”, op cit, p. 39
136 Schallenberger, Erneldo-- “O
Guairá...”, op cit, p. 66-67
137 Lugon, Clovis- “A República...”, op cit,
p. 30
138 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 67. Montoya afirma
que Santo Inácio distava três léguas de Loreto (“Conquista...”, op cit, p. 83)
139 Schallenberger, Erneldo-- “O
Guairá...”, op cit, p. 70
140 Montoya, Pe.
Antònio Ruiz de -- “Conquista...”, op cit, p. 59
141 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op
cit, p. 73
142 Montoya, Pe. Antonio Ruiz-- “Conquista...”, op cit, p. 18. Ver breve
comentário feito anteriormente sobre os
reis espanhóis no período de existência do “Paraná espanhol”, aos quais a
população que aí residente devia
vassalagem.
143 Montoya, Pe. Antonio Ruiz-- “Conquista...”, op
cit, p. 35
144
Lacouture, Jean- “Os Jesuítas”, op cit, p. 435
145
Montoya, Pe. Antònio Ruiz-- “Conquista...”, op cit, p. 139 e 148
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