terça-feira, 9 de outubro de 2012


As primeiras reduções

            Conforme Montoya, em 1610 o Pe. Marcel de Lorenzana funda no atual Paraguai a redução de Santo Inácio Guaçu, “distante 25 léguas de Assunção” 123. Inicia assim “o trabalho apostólico na região” do (rio) Paraná 124. É nesse ano também que, mais ao norte, ou melhor  a nordeste os padres italianos José Cataldino e Simão Maceta fundam a primeira redução no Guairá, no território do atual estado do Paraná. Trata-se de Nossa Senhora de Loreto, localizada à margem esquerda do rio Paranapanema, afluente do Paraná 125. 
                                                                                                                                                
            Lugon considera Cataldino e Maceta os verdadeiros fundadores da República Guarani-- a expressão que usa para designar toda essa experiência jesuítica sesquicentenária   do Paraguai, conforme a sua interpretação-- e não o padre Lorenzana, pois a fundação definitiva da redução a cargo deste jesuíta só ocorreria em 1611 ou 1612, enquanto Loreto foi fundada em julho de 1610 126. O mesmo autor atribui ainda aos dois jesuítas o mérito de terem “concebido o plano geral da futura república cristã” 127. Em outra passagem afirma: ”Os fundadores da República Guarani, os Padres Cataldino e Maceta, mostraram-se plenamente conscientes das origens a que entendiam vincular-se quando formaram 'o projeto de uma república cristã que restaurou nessa barbárie os mais belos dias do cristianismo nascente' (Charlevoix) 128.

            Lacouture questiona essa importância atribuída por Lugon aos padres Cataldino e Maceta na concepção do empreendimento jesuíta. A respeito disso, diz o seguinte:

O projeto da transformação dos guaranis (...) numa espécie de comunidade modelo, depois de pô-los a   salvo dos raptos permanentes de mulheres e escravos, da servidão da encomienda e do seminomadismo, não nasceu na mente de um único jesuíta ou funcionário colonial. Sob a égide do  governador Hernandarias e graças ao impulso de um grande jesuíta, Diego de Torres-Bollo, o plano foi se formando no local, progressivamente 129.

            Lacouture afirma que as ordenações baixadas pelo magistrado Francisco de Alfaro, de 1611 (inspirado por Torres), foram fundamentais para a existência das reduções. Ele assim as resume:  

a) Proibição de toda forma de escravidão e de encomienda para os índios convertidos.
b) Reagrupamento das tribos em aldeias fixas dotadas de um cacique e de um conselho municipal autônomo, o cabildo. 
c) Proibição de espanhóis, portugueses, negros e mestiços penetrarem nas comunidades 130.
                                                                                                                                                  
            O mesmo autor afirma ainda que anteriormente, em 1º de maio de 1609, o preposto geral Cláudio Aquaviva (“quarto sucessor de Loyola”), de Roma, enviara aos padres de Assunção instrução sobre o comportamento dos jesuítas quanto à fundação e à direção das missões dos índios (p. 442). Para Lacouture, adotava-se uma concepção original de cristianismo, com uma visão ampla da divindade, que permitia dialogar com outras culturas. Inspirados por esses princípios trabalharam os cinco padres que ele considera  fundadores, os pioneiros: Diego de Torres-Bollo, provincial de Assunção, “que de certo modo foi o criador”; Antonio Ruiz de Montoya, “o executor por excelência”; os dois italianos Simone Maceta e Giuseppe Cataldino, que fundaram as primeiras reduções, Loreto e San Ignacio; e finalmente Roque Gonzalez, “nascido de pais brancos no Paraguai, que, apesar de algum excesso, foi o militante por excelência, até ser assassinado, vítima de uma maquinação montada por um pajé” (p 442)

As primeiras reduções foram fundadas nos últimos meses de 1609 e os primeiros  de 1610, pelos padres Cataldino e Maceta, graças ao estímulo de Diego de Torres-Bollo, que o “general” Aquaviva nomeara um ano antes provincial do Paraguai a fim de conferir-lhe uma maior liberdade de iniciativa em relação à hierarquia eclesiástica de Lima e de Buenos Aires. Torres era um especialista: alguns anos antes, ele inaugurara uma experiência de reagrupamento de índios em Juni, às margens do   lago Titicaca, inspirando-se ao mesmo tempo no comunitarismo dos incas e nas tentativas feitas na Amazônia por Manuel da Nóbrega, o precursor de todos os  jesuítas latino-americanos. Do fracasso de sua empreitada, ele concluiu que o sucesso dependia de duas condições, o respeito pela cultura indígena e o isolamento dos índios do meio colonial 131.    

            Segundo Charlevoix, citado por Lugon, os padres Cataldino e Maceta só aceitaram sua missão,

depois de o bispo e o governador lhes conferirem amplos poderes para reunirem todos os cristãos em  povoados, para os governarem sem qualquer dependência das cidades e fortalezas vizinhas dos lugares onde se estabelecessem, para construírem igrejas em todas as localidades e para se oporem, em nome do rei, a quem quisesse sujeitar os novos cristãos ao serviço pessoal dos espanhóis, sob qualquer que fosse o pretexto 132.       

            Para Lugon os espanhóis, instalados próximos aos guarani do rio Paraná, sobretudo os de Ciudad Real e Villa Rica, não perdiam ocasião alguma de arrebatar os índios que encontrassem isolados nos campos, mesmo que vinculados às comunidades assistidas pelos jesuítas 133. Por isso, diz esse autor, os padres Cataldino e Maceta  haviam  avançado    bastante para leste, a fim de fundar as primeiras reduções, em locais bem distantes dos espanhóis. Mas afastando-se de um inimigo, acabaram aproximando-se de outro, os “habitantes de São Paulo de Piratininga, pequena cidade da província do Brasil” 134.

            Montoya relata que os dois padres exerceram inicialmente “seus ministérios” junto às populações de Ciudad Real e Villa Rica. Depois vão em busca dos índios mais afastados. Seguem pelo Paranapanema, acompanhados por um intérprete de Ciudad Real. Navegam por esse rio 10 ou 11 dias até encontrarem uma aldeia indígena em suas margens, junto a um “grande arroio” chamado Pirapó, onde viviam cerca de 200 índios.

 Ali levantaram estes o estandarte da cruz, construíram uma pequena choça para servir de igrejinha e lhe deram por título o de Nossa Senhora de Loreto. Lá fizeram alto por alguns dias.
 Tido, porém, informes sobre a existência de gente ao longo daqueles rios, juntos partiram os dois padres com o seu companheiro. Era para que essa gente (...), que vivia esparramada em lugarejos, se reunisse em povoações grandes. Acharam 25 aldeiazinhas e também algumas povoações com um  número razoável de pessoas 135.
           
            Os padres queriam assim reunir toda essa gente em povoações maiores, quer dizer, queriam “reduzi-los”. Esse relato ilustra bem a definição de “redução” dada por Montoya citada mais adiante.

            Os padres Cataldino e Maceta recebem em 1609 instruções sobre a fundação de reduções por parte do provincial padre Diego de Torres Bollo 136. Este, por sua vez, “recebeu ordem de renunciar inteiramente às missões ambulantes, a fim de estabelecer missões estáveis em locais determinados e afastados das aglomerações coloniais.”  Os padres visavam com isso a “constituição de comunidades cristãs sólidas e duráveis. Era preciso, por conseguinte, fixar os índios em redor de uma igreja. Importava também isolar os novos convertidos, mantê-los separados dos coloniais corrompidos.” 137

            Os mesmos padres fundam no ano seguinte uma segunda redução, a de Santo Inácio Menor, estabelecida a quatro léguas de Loreto 138.  Essas duas primeiras reduções,  situadas na margem esquerda do Paranapanema, passarão a reunir mais de 2000 famílias 139.
                                                                                                                                                         Em 1612 chegam outros dois jesuítas para  atuar no Guairá: Antonio Ruiz de Montoya e Martin de Urtasun. Com esse reforço, Loreto fica a cargo de Maceta e Montoya enquanto Santo Inácio, de Cataldino e Martin. Fundam “escola de ler e escrever” para crianças e jovens e fixam “o tempo de uma hora pela manhã e de outra à tarde, para que todos os adultos viessem à catequese ou doutrina”, que também era ensinada nos sermões dominicais 140

            Mas o padre Martin vem a falecer logo depois 141O padre Montoya (1585-1652),  porém, teria um papel muito importante nos anos vindouros, particularmente quanto ao desenvolvimento e expansão do trabalho missionário, formando novas reduções. A partir de 1620 torna-se o Superior Geral das reduções do  Paraguai. Além disso, é autor de uma “Arte e vocabulário da língua guarani” e um relato do início da experiência reducional, até 1639, data de sua publicação em Madri (“Conquista Espiritual”). Esse livro serviu para denunciar, junto à sede da Corte espanhola, na qual se apresentou o jesuíta peruano, os crimes, segundo ele, praticados pelos paulistas contra as reduções, no afã de capturar os índios catequizados. 

            O objetivo da vida missionária de Montoya foi, em suas palavras, buscar os índios selvagens “para agregá-los ao aprisco da Santa Igreja e ao serviço de Sua Majestade” 142 (note-se que a finalidade religiosa coexistia com a política). Ele visava agregá-los em reduções, que assim definiu: 

 (...) chamamos 'Reduções' aos 'povos' ou  povoados de índios que, vivendo à sua antiga usança em selvas, serras e vales, junto a arroios escondidos, em três, quatro ou seis casas apenas, separados uns dos outros em questão de léguas duas, três ou mais, 'reduziu-os' a diligência dos padres a povoações não  pequenas e à vida política (civilizada) e humana, beneficiando algodão com que se vistam, porque em geral viviam na desnudez, nem ainda cobrindo o que a natureza ocultou 143.

            Como diz Lacouture, a definição de Montoya destaca proibição (pela vida civilizada) da nudez, mas não fala da antropofagia, poligamia ou ociosidade 144,  outras características dos índios. 

            Ainda segundo esse autor, o  termo ”redução” tem também um sentido militar, nos dicionários latinos. Por isso, ”as primeiras cartas dos jesuítas designavam as futuras reduções como oppida christianorum--  fortalezas cristãs-- termo  essencialmente militar”  (p.436) .

            Em suma, a redução (na época denominada doctrina ou paróquia, pueblo ou aldeamento (p.435),  é  “uma espécie de cadinho coletivo onde se moldam seres civilizados; uma forja cuja finalidade é socializar e converter, ao mesmo tempo uma fortaleza.” (p.436)

            Não é de estranhar esse caráter militar das reduções considerando a vida pregressa (antes da conversão) e as concepções do fundador da Companhia de Jesus, com sua ênfase na disciplina...
            As reduções de Loreto e Santo Inácio foram as que mais duraram dentre aquelas que se estabeleceram no Guairá: pouco mais de vinte anos. Posteriormente, criaram-se outras doze, segundo Schallenberger, se incluirmos a de Santa Maria, que ele considera não  da região do Guairá mas do (rio) Paraná, coerente com Montoya, que fala em treze reduções estabelecidas no Guairá 145. Chmyz, entretanto, aponta quinze, acrescentando treze àquelas duas primeiras. Essas outras reduções foram criadas após 1622. Delas, as que mais duraram, não chegaram a durar dez anos.

            Embora essa experiência reducional do Guairá fosse breve, é importante pelo seu pioneirismo, por representar o esforço inicial para a implantação do projeto jesuítico. Simultaneamente ao Guairá, ele se iniciara também em outra região, mais ao sul do continente, entre ambas as margens dos rios Paraná e Uruguai (territórios atuais do Paraguai, Argentina e Brasil- cf. mapa nº 9). No total, a experiência abrange um período superior a  cento e cinquenta anos, desde a fundação da primeira redução (1610) até a  expulsão dos jesuítas dos domínios coloniais de Espanha (1767) e a partida dos últimos padres no ano seguinte.  



123  Montoya, Pe. Antonio Ruiz-- “Conquista ...”, op cit, p.35
124 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 86
125 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 66; Chmyz, Igor-- “Arqueologia e História...”, op cit, p. 76-77. Gadelha, in “As Missões...”, op cit, afirma que os índios do Guairá já estavam “encomendados aos vizinhos espanhóis desde os tempos de Irala”. Mas esses índios, “já aculturados”, não contavam com assistência religiosa, razão por que são enviados para a região (onde antes “pregara o padre Manuel Ortega por doze anos”) os padres José Cataldino e Simão Maceta. A autora não atribui a fundação de Santo Inácio e Nossa Senhora de Loreto a esses dois jesuítas, pois, segundo ela, eles já encontraram, ao chegar, esses “dois povoados de índios encomendados”.  “Ao contrário dos outros curas, porém, tomariam resolutamente a defesa da liberdade do índio, opondo-se à opressão do serviço pessoal e às costumeiras malocas que espanhóis e portugueses faziam em suas terras. Esta ação, até então inusitada por parte de sacerdotes espanhóis, atrairia e chamaria a atenção dos índios, que se sentiam protegidos sob a autoridade dos padres.” Assim, muitos caciques procurariam os padres Cataldino e Maceta, pedindo proteção ou mesmo para se aldearem, inclusive, mais tarde, “o famoso Tayaoba  que, em 1626, seria convertido pelo padre Antonio Ruiz Montoya”) (Gadelha, Regina Maria A.F.-- “As  Missões...”, op cit, p. 211 e 229, nota 65).
126 Lugon, Clovis- “A República...”, op cit, pp.35-36, nota 11
127 Id., ibid., p.32
128 Id., ibid., p. 339. Segundo Gadelha, os autores divergem quanto à questão de quem foi o verdadeiro fundador das missões jesuíticas. Diz ela que para Carlos Leonhardt foi o padre Roque Gonzalez, “dando forma orgânica às reduções e nelas introduzindo método e organização.” Diz também que Jaime Cortesão “afirma terem os jesuítas paraguaios copiado o sistema de organização das aldeias que a Companhia adotava no Brasil”. E que Félix de Azara, Juan Francisco Aguirre e Blas Garay “insistem no trabalho desenvolvido pelo franciscano Frei Luís Bolanõs”. A autora conclui a nota assim: “Evidentemente, a estrutura das aldeias adotada pelos jesuítas, no Paraguai, não era invenção deles, já que a própria legislação de Felipe II, alusiva a povoamentos, em 1573, já ordenava, precisamente, qual deveria ser a disposição das construções nas novas povoações. Assim, parece mais lógico aceitar as palavras de Roque Gonzalez” (Gadelha, Regina Maria A.F.-- “As Missões...”, op cit, nota 103, p. 233). Essas palavras eram as que Gonzalez escrevera em carta ao padre Torres, citadas antes por Gadelha, nas quais afirmara, a propósito da redução em que atuava, Santo Inácio Guaçu, que “Fué necesario construir este pueblo desde sus fundamentos” e que, para assegurar uma vida mais cristã, longe do pecado, decidira construir casas individuais para os indios, “a la manera de los pueblos de españoles” (p.221-222). Assim Gadelha atribui o pioneirismo das reduções não a Loreto e Santo Inácio Mini, no Guairá, mas a Santo Inácio Guaçu, no Paraguai atual, iniciada pelo padre Lorenzano que Roque Gonzalez substituiria posteriormente, introduzindo aí “disciplina e ordem, reconstruindo a aldeia à maneira dos espanhóis” (p. 221).
129 Lacouture, Jean- “Os Jesuítas”, op cit, p.434
130 Id., ibid., p. 434
131 Id., ibid., p. 442-443
132 Lugon, Clovis- “A República...”, op cit, p.32
133 Id., ibid., p. 45. Tais comunidades não eram ainda as reduções. Segundo Lugon, Os jesuítas só declaravam as novas fundações no momento em que elas estavam consolidadas e em estado de pagar imposto”. Cf. “A República...”, op cit, p.40, nota 17
134 Lugon, Clovis- “A República...”, op cit, p.46
135 Montoya, Pe. Antònio Ruiz-- “Conquista...”, op cit, p. 39  
136 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 66-67
137 Lugon, Clovis- “A República...”, op cit, p. 30
138 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 67. Montoya afirma que Santo Inácio distava três léguas de Loreto (“Conquista...”, op cit, p. 83)
139 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 70
140 Montoya, Pe. Antònio Ruiz de -- “Conquista...”, op cit, p. 59
141  Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 73
142 Montoya, Pe. Antonio Ruiz-- “Conquista...”, op cit, p. 18. Ver breve comentário feito anteriormente  sobre os reis espanhóis no período de existência do “Paraná espanhol”, aos quais a população que aí residente devia  vassalagem.
143  Montoya, Pe. Antonio Ruiz-- “Conquista...”, op cit, p. 35
144 Lacouture, Jean- “Os Jesuítas”, op cit, p. 435
145  Montoya, Pe. Antònio Ruiz-- “Conquista...”, op cit,  p. 139 e 148 

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