terça-feira, 9 de outubro de 2012


A chegada dos jesuítas




         
            De acordo com Schallenberger 103, foi o bispo de Tucumán, D. Francisco Vitória,   quem solicitou a Felipe II, em 1584, e também ao provincial do Peru, a José de Anchieta, ao bispo de Salvador e ao governador geral do Brasil, a vinda dos jesuítas ao Rio da Prata (os franciscanos e mercedários vieram bem antes, na expedição de D.Pedro de Mendoza 104). A Companhia de Jesus, que já estava presente no Brasil e no Peru, enviou então desses países os primeiros jesuítas para a região, que se estabeleceram em Tucumán e Assunção. Já estavam presentes em Assunção em 1588 105. No ano seguinte, dois deles, Manuel Ortega e Tomás Fields, vindos do Brasil, foram designados missionários do Guairá.  Schallenberger afirma a seu respeito, na obra citada: “O antigo Guairá compreendia a região localizada entre o rio Paraná na vertente oeste, o Paranapanema ao norte, o Iguaçu ao sul e a leste a linha de Tordesilhas” (p.53). Se não fosse pelo fato de que o entendimento espanhol era diferente do português com relação ao traçado  do  meridiano  de  Tordesilhas, o Guairá caberia todo dentro do território atualmente paranaense. A região teria tomado o nome do cacique que antigamente dominava a região 106 mas essa afirmação, como vimos, é discutível. Os dois padres passaram a catequizar os índios e desenvolver o seu trabalho missionário em aldeias próximas a Villa Rica, entre 1589 e 1597.

            Segundo ainda Schallenberger,

O potencial humano da região do Guairá era muito grande (...) na área circunvizinha de Vila Rica havia mais de 100 mil índios tributários, sem contar as mulheres, os filhos e os velhos. Estes índios haviam sofrido a intensa exploração dos colonos espanhóis encomendeiros. Revoltaram-se contra o serviço pessoal, o que fez com que em 1589 os padres Ortega e Fields, da Companhia de Jesus,  iniciassem os seus trabalhos apostólicos naquela região 107.
             
            Mais adiante o mesmo autor afirma que em Villa Rica-- centro de processamento de erva-mate –havia em torno de 100 encomendeiros 108. Também Montoya afirma que nessa época Villa Rica “tinha 100 homens” enquanto Ciudad Real tinha 30 109. Afirma ainda, na mesma passagem de seu livro, que Villa Rica situava-se a 60 léguas de Ciudad Real e que a comunicação entre elas era feita por rios.

            Cortesão destaca, nesse período inicial, principalmente o trabalho do padre Manuel Ortega, português, quanto à evangelização dos índios do Guairá. Diz ele: “Durante 16 anos, entre 1588 e 1604, com pequenos intervalos, serviu o padre Ortega nas regiões extremas do Paraguai, em Ciudad Real de Guairá, Vila Rica, sobre o Ivaí, e Xerez, principalmente nas duas primeiras, e, mais designadamente, ainda na segunda” 110 (...) “Certamente interveio, como figura principal, na construção da igreja de Vila Rica, 'a primeira que a Companhia fez nos Governos do Rio da Prata' ” (p.78). Entre 1604 (partida de Ortega) e 1609 (ano em que são enviados os padres Cataldino e Maceta para o Guairá) “serviu de laço e intermediário o padre Filds, que ficara na base de Assunção” (p.80). Todavia, na região do Guairá, ou melhor em Villa Rica, a Companhia de Jesus continuava a manter “casa, igreja e terras próprias”. As terras lhe haviam sido concedidas em 1594 pelo  governador  da  província  de Guairá.                                                                                                                           
            Segundo Lacouture, é do Brasil que se lançam as primeiras bases jesuíticas em direção ao Peru, ao Rio da Prata e ao Paraguai. Em 1595 é  criado o colégio jesuíta de Assunção. “E ali, em 1603, um sínodo convocado por iniciativa de um primo de Inácio de Loyola, Martin, decidira o envio de jesuítas ao Guaíra, país dos guaranis, às margens do rio Paraná” 111.  Na mesma página, Lacouture afirma que o bispo de Tucumán recorreu aos jesuítas (“cuja intervenção estava sendo preparada em Roma pelo quinto preposto geral, Claudio Aquaviva”) porque se impressionara “com as experiências das comunidades fundadas no Brasil pelo padre Manuel da Nóbrega com o nome de aldeamentos”.   

            Em 1605 foi criada a Província Jesuítica do Paraguai, separada da do Peru e do Brasil, sendo o primeiro Superior Provincial o padre Diego de Torres Bollo 112. Sua abrangência territorial era muito mais ampla do que o nome sugere atualmente. Incluía o sul da Bolívia, o Paraguai e a Argentina de hoje, e as regiões do Guairá, do Paraná (“entre o curso inferior do Rio Paraná e o Rio Uruguai”), do Uruguai ao Tape (“parte do atual Estado do Rio Grande do Sul”) e do Itatim (no atual Mato Grosso do Sul) 113. Inicialmente incluía ainda o Chile. 

            No Guairá se inicia o “trabalho de evangelização por redução dos jesuítas com os índios Guarani na América”, como diz Schallenberger. Para ele, tal “estratégia de dominação pacífica veio de encontro à política de Hernandarias”, política essa voltada a “eliminar os conflitos e promover o efetivo povoamento” 114.

            Com relação aos conflitos, Gadelha afirma que em 1558 sublevaram-se os índios da Província do Paraguai. Foi uma rebelião que se generalizou, “atingindo todas as parcialidades guarani, mesmo as mais longínquas como as dos índios guairá e paraná”, motivada pelo “anseio por liberdade e o desejo de se livrarem do 'insuportável jugo espanhol'” 115 (lembremo-no que a primeira distribuição de “encomiendas” ocorrera alguns anos antes, em 1555).   

            Mas essa revolta, que se estendeu até 1560, não seria a única. Em nota, Gadelha cita Juan Francisco Aguirre que relata revoltas guarani contra a prestação de serviço ocorridas em 1563, 1569, 1576, 1577, 1579, 1582, 1584, 1589, 1592, 1593, 1596, 1601, 1605 e 1607! 116, o que relativiza o caráter “dócil” dos guarani apontado por Lugon.

            De acordo com Westphalen e Balhana, os índios reagiam

contra o sistema de encomiendas e, de modo geral, contra o domínio espanhol, batendo inclusive as  tropas do Governador Hernando Arias de Saavedra, o qual, em consequência, recomendou ao rei Felipe III fosse confiada a sua pacificação e conversão aos jesuítas espanhóis.
A sugestão foi aceita, criando-se por Carta Régia de 1608, a Província Del Guairá, abrangendo as terras do ocidente do Paraná. Ali seriam estabelecidas as Reduções Jesuíticas do Guairá, chegando à leste, até o rio Tibagi; ao norte, ao rio Paranapanema; ao sul, ao rio Iguaçu; e , a oeste, ao rio Paraná (Westphalen, Cecília Maria e Balhana, Altiva Pilatti-- “Presença Espanhola...”, op cit, p.380).

            As mesmas autoras afirmam ainda que no Guairá o sistema de encomiendas foi adotado desde cedo, “reduzindo os indígenas à servidão”. Eles eram utilizados, dentre outras atividades, na coleta de erva-mate nos ervais nativos da região. “A erva-mate encontrava aceitação e mesmo era grandemente requisitada, tanto pelos mineradores do Potosi, como pelos moradores do estuário do Prata.” (op cit, p. 380).
            A propósito, a descoberta das minas de prata de Potosi, em 1545, atraiu tanta gente para a região que no seu auge chegou a alcançar, segundo os historiadores da época, 120 mil habitantes em 1573 e 150 mil em 1611, tornando “Potosi naquele momento (...) uma das mais ricas cidades do mundo” (cf. Câmara, Marcelo- “Das entranhas de Potosi, a prata que extasiou a Espanha”, p.74-79, in “História Viva” ano III, nº 26).
            Segundo Lugon, o governador Hernandarias comunicara ao rei de Espanha ser “impossível subjugar os 150.000 índios do do  Guaíra117. O rei Filipe III, que se destacou, como já foi dito, por uma política de paz em seu reinado, adota então a solução que lhe é proposta, de aumentar a presença dos jesuítas na região, pois os índios “só devem ser submetidos pelos ensinamentos do Evangelho” (os sucessores de Filipe III, assim como ele próprio, reconhecem a liberdade dos índios, e sua vinculação imediata à Coroa 118) (...) “A 26 de novembro de 1609, o teniente-general do governador das províncias do Paraguai e do Prata ordenava ao capitão Pedro Garcia que impedisse aos colonos recrutarem escravos na província de Guaíra, tendo ficado a redução dos habitantes confiada, a título exclusivo, aos padres Cataldino e e Maceta” 119. Buscava-se, portanto, experimentar um novo sistema de incorporação dos índios à civilização, face ao fracasso dos sistema de “encomiendas” 120.
            De acordo com Gadelha (p. 113), Hernandarias “procuraria assegurar a sobrevivência da população nativa, preservando a comunidade indígena”. Assim, suas Ordenanças, de 1603, visavam “a conservação dos índios reduzidos” nas aldeias permanentes, cuja economia deveria ser autossuficiente, por meio da introdução do arado, gado, ferramentas, técnicas européias etc. Nessas determinações, limitou a saída dos mitaios em apenas 1/3 dos homens de cada aldeia por tempo determinado. Proibiu viagens dos índios para longe das cidades em que viviam seus encomenderos. E para evitar a exploração do trabalho da mulher, proibiu o trabalho das índias que acompanhassem os maridos às mitas (para o conceito de “mita”, v antes, nota 58 desta monografia).
            Todavia, as Ordenanças do visitador real, D. Francisco de Alfaro, de 1611, foram mais ousadas, chegando a extinguir a prestação do serviço pessoal. Conforme resumo feito por Gadelha na obra citada, essas Ordenanças introduziram “o princípio da comuna indígena exclusiva e fechada”, regulamentando o seu funcionamento (p.114). As aldeias foram fixadas em lugares pré-determinados e os caciques, reduzidos a meros funcionários reais. Alfaro introduziu nas aldeias a organização administrativa semelhante à das cidades e povoados espanhóis (existência de um cabildo, formado por alcaides e regedores). Os membros do cabildo e os caciques não pagavam tributo. Integravam uma camada de privilegiados, os quais se encarregavam de manter a boa ordem do povoado e principalmente que os índios “não faltassem ao serviço de seus encomenderos” (p.115). Cada povoado devia possuir um Cura e Doutrinante. Para evitar os abusos que especifica, Alfaro proibia a permanência de espanhóis e mestiços nos povoados índios bem como a presença de administradores brancos em suas aldeias (p.116). Estabeleceu-se uma espécie de acordo entre encomenderos e administradores, sempre em detrimento dos índios (p.115). Dentre essas outras disposições, as Ordenanças extinguiam “o serviço pessoal dos 'yanaconas'”(p. 138). Na realidade Alfaro nada inovou, apenas procurou fazer cumprir a Ordenanças e Cartas Régias anteriores (p. 131). Mas contra elas insurgiram-se os “encomenderos”. E os jesuítas,que inicialmente foram bem recebidos pelos espanhóis, na expectativa de que sua vinda à região contribuísse para diminuir a fuga dos índios, passaram a ser mal vistos, porque se acreditava (corretamente) que eles eram os inspiradores daquelas Ordenanças.
            As Ordenanças de Alfaro provocaram protestos dos encomenderos, por serem consideradas rigorosas, impossíveis de cumprir, dada a realidade da terra (p.117). Diz Gadelha: “Realmente, não podiam os espanhóis, naquele momento, libertarem seus índios nem lhes pagarem salário (...)”. Foi por isso também que até então não se havia cumprido a Carta Régia de 1601, que mandava as autoridades coloniais compelir os índios a se apresentar em praça pública e alugar seu trabalho em troca de salário (p.118). Para Gadelha era irrealista, dada a precariedade econômica do Paraguai, querer suprimir o serviço pessoal, substituindo-o pelo aluguel da mão-de-obra indígena em troca de salário. Diz a pesquisadora: “Insurgindo-se contra a prática do serviço pessoal, levantavam-se os jesuítas contra toda a estrutura, social e econômica, sobre a qual repousava a sociedade paraguaia” (p. 216) (Gadelha afirma que o tipo de economia do Paraguai também não permitia a substituição da mão-de-obra indígena pela do africano, por não dispor de capitais para a sua aquisição (p.106). Porém, pelo seu território transitava contrabando de negros rumo à região das minas de Potosi; e por aí descia também contrabando de prata destinada ao Brasil (p.127, nota 60) ). Assim, ficou letra morta o item das Ordenanças de Alfaro que extinguia o serviço pessoal. Tanto era verdadeiro o irrealismo da medida que somente no século XIX os índios guarani do Paraguai seriam libertos, por um decreto governamental (p. 195-201 e notas 38 e 53 das p. 206 e 208, respectivamente).
            Continuou a haver portanto a prestação de serviços pessoais, reguladas pelos diversos dispositivos dos governadores. As Ordenanças de Alfaro seriam motivo de permanente conflito entre colonos e jesuítas espanhóis, os quais “defendiam a irrestrita liberdade do índio” (p.118).
            Como as aldeias fixas dos guarani, conforme essas determinações, deviam contar com assistência religiosa, o provincial padre Diego de Torres mandou para as do Guairá os padres Cataldino e Maceta. Em carta ânua de 1610 ele informa que enviou os dois padres para fundar uma missão “em terras do Guairá e Tibajiba” que “tinha por finalidade impedir a fuga dos índios, motivada pela prestação obrigatória aos espanhóis do detestado 'serviço pessoal' ” (p.195). De passagem para o Guairá, aqueles padres já se indispuseram com alguns “vizinhos” em Maracaju por pregarem contra o serviço pessoal (p. 210). Anteriormente, o padre Torres dera instruções aos missionários para evitar a entrada de espanhóis nos povoados indígenas sob sua direção e não permitir saída de índios para prestar serviço pessoal aos encomenderos (p. 210) (muitas vezes os índios fugiam dos encomenderos e se refugiavam nas reduções, buscando a proteção dos padres (p.219), os quais se recusavam a entregá-los depois, quando os encomenderos os reclamavam, com base no argumento de que eram juridicamente livres e estavam subordinados apenas ao Rei de Espanha).
            O governador Hernandarias e seu sucessor, Marin de Negrón, adotaram a idéia, defendida pelos jesuítas, de que as comunidades de índios livres vinculavam-se diretamente à Coroa. Para os padres, os índios estavam subordinados diretamente ao Rei, “único meio de assegurar-lhes a liberdade em face dos coloniais” 121. Depois daqueles dois governadores, porém, diz Lugon, “os administradores coloniais mostraram-se geralmente hostis”, permitindo que as comunidades guaranis fossem saqueadas e  destruídas 122.   


Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus
(1491-1556)




103 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá e o espaço missioneiro”. Cascavel-PR: Coluna do Saber, 2006- p.48-49, 50 e 53. Lugon  informa que o bispo Vitória era dominicano (cf. “A República...”, op cit, p.28). Schallenberger lembra que os primeiros jesuítas vieram para o Brasil em 1549, acompanhando o governador-geral Tomé de Souza, liderados pelo padre Manuel da Nóbrega. Note-se que a Companhia de Jesus era bem recente ainda, pois havia sido fundada há apenas nove anos (cf. Lacouture, Jean-- “Os Jesuítas”, Porto Alegre, L&PM, 1994, p.429 e 518). Afonso E. Taunay afirma que os jesuítas se estabeleceram em Lima em 1572 (cf. “História das Bandeiras Paulistas”, t.I, v.1-  São Paulo, Melhoramentos; Brasília, INL, 1975- p. 37).
104 “Aportes de Benjamín Velilla...”, op cit, p. 132
105 Gadelha, Regina Maria A.F.-- “As Missões...”, op cit, p.117
106 Cf carta ânua do Pe. Nicolau Mastrillo Duran, datada de 12.XI.1628, in “Jesuítas e Bandeirantes no Guairá”, op cit, p. 209
107 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 61 
108  Id., ibid., p. 62 
109 Montoya, Pe. Antonio Ruiz de-- “Conquista espiritual feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas Províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape”. 2a. ed.- Porto Alegre: Martins Livreiro-Editor, 1997- p. 37. Em nota, na mesma página, o padre Arthur Rabuske, S.J. supõe que essa população se refere apenas ao número de espanhóis ou de famílias espanholas. Por outro lado, a carta ânua de 1609 do padre Diego de Torres antes citada informava que Villa Rica tinha então 100 vizinhos e Ciudad Real, 60.
110 Cortesão, Jaime- “Jesuítas...”, op cit, p. 77.  Ver citação de Gadelha mais adiante (nota 125) em que ela  afirma que o padre Ortega pregou no Guairá por doze anos.  
111 Lacouture, Jean-- “Os Jesuítas”, op cit, p. 429
112 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 50;  Montoya, Pe. Antonio Ruiz-- “Conquista...”, op cit, p. 29.  O padre Diego  de Torres já foi aqui  mencionado anteriormente (cf  nota 61)    
113 “História Geral da Civilização Brasileira”- sob a direção de Sergio Buarque de Holanda- t. I, v. 1, 7a ed, São Paulo: Difel, 1985, p. 285-286
114 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p.53 e 57
115 Gadelha, Regina Maria A.F.-- “As Missões...”, op cit, p. 109-110
116 Id., ibid., p. 110 e 130, nota 82
117 Lugon, Clóvis- “A República...”, op cit, p. 30.  Como vimos anteriormente, Temístocles Linhares fala em trezentos mil guairenhos por volta de 1554, com base  no que disseram os “cronistas”.
118 Lugon,Clóvis - “A República...”, op cit, p. 105
119 Id., ibid., p. 30-31
120 Vasconsellos, Victor Natalicio-- “Lecciones...”, op cit, p. 76
121 Lugon, Clovis- “A República...”, op cit, p.105
122 Id., ibid., p. 31

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