De acordo com Schallenberger 103, foi o bispo de Tucumán, D. Francisco Vitória, quem solicitou a Felipe II, em 1584, e também ao provincial do Peru, a José de Anchieta, ao bispo de Salvador e ao governador geral do Brasil, a vinda dos jesuítas ao Rio da Prata (os franciscanos e mercedários vieram bem antes, na expedição de D.Pedro de Mendoza 104). A Companhia de Jesus, que já estava presente no Brasil e no Peru, enviou então desses países os primeiros jesuítas para a região, que se estabeleceram em Tucumán e Assunção. Já estavam presentes em Assunção em 1588 105. No ano seguinte, dois deles, Manuel Ortega e Tomás Fields, vindos do Brasil, foram designados missionários do Guairá. Schallenberger afirma a seu respeito, na obra citada: “O antigo Guairá compreendia a região localizada entre o rio Paraná na vertente oeste, o Paranapanema ao norte, o Iguaçu ao sul e a leste a linha de Tordesilhas” (p.53). Se não fosse pelo fato de que o entendimento espanhol era diferente do português com relação ao traçado do meridiano de Tordesilhas, o Guairá caberia todo dentro do território atualmente paranaense. A região teria tomado o nome do cacique que antigamente dominava a região 106 mas essa afirmação, como vimos, é discutível. Os dois padres passaram a catequizar os índios e desenvolver o seu trabalho missionário em aldeias próximas a Villa Rica, entre 1589 e 1597.
Segundo ainda Schallenberger,
O potencial humano da região do Guairá era muito grande (...) na área
circunvizinha de Vila Rica havia
mais de 100 mil índios tributários, sem contar as mulheres, os filhos e os
velhos. Estes índios haviam sofrido a
intensa exploração dos colonos espanhóis encomendeiros. Revoltaram-se contra o serviço pessoal, o que fez com que em 1589
os padres Ortega e Fields, da Companhia de Jesus, iniciassem os seus trabalhos apostólicos naquela região 107.
Mais adiante o mesmo autor afirma
que em Villa Rica--
centro de processamento de erva-mate –havia em torno de 100 encomendeiros 108. Também Montoya afirma que nessa
época Villa Rica “tinha 100 homens” enquanto Ciudad Real tinha 30 109. Afirma ainda, na mesma passagem de
seu livro, que Villa Rica situava-se a 60 léguas de Ciudad Real e que a
comunicação entre elas era feita por rios.
Cortesão destaca, nesse período
inicial, principalmente o trabalho do padre Manuel Ortega, português, quanto à
evangelização dos índios do Guairá. Diz ele: “Durante 16 anos, entre 1588 e
1604, com pequenos intervalos, serviu o padre Ortega nas regiões extremas do
Paraguai, em Ciudad Real
de Guairá, Vila Rica, sobre o Ivaí, e Xerez, principalmente nas duas primeiras,
e, mais designadamente, ainda na segunda” 110
(...) “Certamente interveio, como figura principal, na construção da
igreja de Vila Rica, 'a primeira que a Companhia fez nos Governos do Rio da
Prata' ” (p.78). Entre 1604 (partida de Ortega) e 1609 (ano em que são
enviados os padres Cataldino e Maceta para o Guairá) “serviu de laço e
intermediário o padre Filds, que ficara na base de Assunção” (p.80).
Todavia, na região do Guairá, ou melhor em Villa Rica , a Companhia
de Jesus continuava a manter “casa, igreja e terras próprias”. As terras
lhe haviam sido concedidas em 1594 pelo
governador da província
de Guairá.
Segundo Lacouture, é do Brasil que
se lançam as primeiras bases jesuíticas em direção ao Peru, ao Rio da Prata e
ao Paraguai. Em 1595 é criado o colégio
jesuíta de Assunção. “E ali, em 1603, um sínodo convocado por iniciativa de
um primo de Inácio de Loyola, Martin, decidira o envio de jesuítas ao Guaíra,
país dos guaranis, às margens do rio Paraná” 111. Na mesma página, Lacouture afirma que o bispo
de Tucumán recorreu aos jesuítas (“cuja intervenção estava sendo preparada
em Roma pelo quinto preposto geral, Claudio Aquaviva”) porque se
impressionara “com as experiências das comunidades fundadas no Brasil pelo
padre Manuel da Nóbrega com o nome de aldeamentos”.
Em 1605 foi criada a Província Jesuítica do Paraguai, separada da do
Peru e do Brasil, sendo o primeiro Superior Provincial o padre Diego de Torres
Bollo 112. Sua abrangência territorial era
muito mais ampla do que o nome sugere atualmente. Incluía o sul da Bolívia, o
Paraguai e a Argentina de hoje, e as regiões do Guairá, do Paraná (“entre o
curso inferior do Rio Paraná e o Rio Uruguai”), do Uruguai ao Tape (“parte
do atual Estado do Rio Grande do Sul”) e do Itatim (no atual Mato Grosso do
Sul) 113. Inicialmente incluía ainda o
Chile.
No Guairá se inicia o “trabalho
de evangelização por redução dos jesuítas com os índios Guarani na América”,
como diz Schallenberger.
Para ele, tal “estratégia de dominação pacífica veio de encontro à
política de Hernandarias”, política essa voltada a “eliminar
os conflitos e promover o efetivo povoamento” 114.
Com relação aos
conflitos, Gadelha afirma que em 1558 sublevaram-se os índios da Província do
Paraguai. Foi uma rebelião que se generalizou, “atingindo todas as
parcialidades guarani, mesmo as mais longínquas como as dos índios guairá e
paraná”, motivada pelo “anseio por liberdade e o desejo de se livrarem
do 'insuportável jugo espanhol'” 115
(lembremo-no que a primeira distribuição de “encomiendas” ocorrera alguns anos
antes, em 1555).
Mas essa revolta, que
se estendeu até 1560, não seria a única. Em nota, Gadelha cita Juan Francisco
Aguirre que relata revoltas guarani contra a prestação de serviço ocorridas em
1563, 1569, 1576, 1577, 1579, 1582, 1584, 1589, 1592, 1593, 1596, 1601, 1605 e
1607! 116, o que relativiza o caráter “dócil”
dos guarani apontado por Lugon.
De acordo com Westphalen e Balhana,
os índios reagiam
contra
o sistema de encomiendas e, de modo geral, contra o domínio espanhol,
batendo inclusive as tropas do
Governador Hernando Arias de Saavedra, o qual, em consequência, recomendou ao
rei Felipe III fosse confiada a
sua pacificação e conversão aos jesuítas espanhóis.
A
sugestão foi aceita, criando-se por Carta Régia de 1608, a Província Del
Guairá, abrangendo as terras do ocidente
do Paraná. Ali seriam estabelecidas as Reduções Jesuíticas do Guairá, chegando
à leste, até o rio Tibagi; ao
norte, ao rio Paranapanema; ao sul, ao rio Iguaçu; e , a oeste, ao rio Paraná (Westphalen, Cecília Maria e Balhana, Altiva
Pilatti-- “Presença Espanhola...”, op cit, p.380).
As
mesmas autoras afirmam ainda que no Guairá o sistema de encomiendas foi
adotado desde cedo, “reduzindo os indígenas à servidão”. Eles eram
utilizados, dentre outras atividades, na coleta de erva-mate nos ervais nativos
da região. “A erva-mate encontrava aceitação e mesmo era grandemente
requisitada, tanto pelos mineradores do Potosi, como pelos moradores do
estuário do Prata.” (op cit, p. 380).
A
propósito, a descoberta das minas de prata de Potosi, em 1545, atraiu tanta
gente para a região que no seu auge chegou a alcançar, segundo os historiadores
da época, 120 mil habitantes em 1573 e 150 mil em 1611, tornando “Potosi
naquele momento (...) uma das mais ricas cidades do mundo” (cf. Câmara,
Marcelo- “Das entranhas de Potosi, a prata que extasiou a Espanha”, p.74-79, in “História Viva” ano
III, nº 26).
Segundo Lugon, o
governador Hernandarias comunicara ao rei de Espanha ser “impossível subjugar os 150.000 índios do do Guaíra” 117. O rei Filipe III, que se destacou,
como já foi dito, por uma política de paz em seu reinado, adota então a solução
que lhe é proposta, de aumentar a presença dos jesuítas na região, pois os
índios “só devem ser submetidos pelos ensinamentos do Evangelho” (os
sucessores de Filipe III, assim como ele próprio, reconhecem a liberdade dos
índios, e sua vinculação imediata à Coroa 118)
(...) “A 26 de novembro de 1609, o teniente-general do governador das
províncias do Paraguai e do Prata ordenava ao capitão Pedro Garcia que
impedisse aos colonos recrutarem escravos na província de Guaíra, tendo ficado
a redução dos habitantes confiada, a título exclusivo, aos padres Cataldino e e
Maceta” 119. Buscava-se, portanto,
experimentar um novo sistema de incorporação dos índios à civilização, face ao
fracasso dos sistema de “encomiendas” 120.
De
acordo com Gadelha (p. 113), Hernandarias “procuraria assegurar a
sobrevivência da população nativa, preservando a comunidade indígena”.
Assim, suas Ordenanças, de 1603, visavam “a
conservação dos índios reduzidos” nas aldeias permanentes, cuja economia
deveria ser autossuficiente, por meio da introdução do arado, gado,
ferramentas, técnicas européias etc. Nessas determinações, limitou a saída dos
mitaios em apenas 1/3 dos homens de cada aldeia por tempo determinado. Proibiu
viagens dos índios para longe das cidades em que viviam seus encomenderos. E
para evitar a exploração do trabalho da mulher, proibiu o trabalho das índias
que acompanhassem os maridos às mitas (para o conceito de “mita”, v antes, nota
58 desta monografia).
Todavia,
as Ordenanças do visitador real, D. Francisco de Alfaro, de 1611, foram mais
ousadas, chegando a extinguir a prestação do serviço pessoal. Conforme resumo
feito por Gadelha na obra citada, essas Ordenanças introduziram “o princípio da comuna indígena exclusiva e
fechada”, regulamentando o seu funcionamento (p.114). As aldeias foram
fixadas em lugares pré-determinados e os caciques, reduzidos a meros
funcionários reais. Alfaro introduziu nas aldeias a organização administrativa
semelhante à das cidades e povoados espanhóis (existência de um cabildo,
formado por alcaides e regedores). Os membros do cabildo e os caciques não
pagavam tributo. Integravam uma camada de privilegiados, os quais se
encarregavam de manter a boa ordem do povoado e principalmente que os índios “não faltassem ao serviço de seus
encomenderos” (p.115). Cada povoado devia possuir um Cura e Doutrinante.
Para evitar os abusos que especifica, Alfaro proibia a permanência de espanhóis
e mestiços nos povoados índios bem como a presença de administradores brancos
em suas aldeias (p.116). Estabeleceu-se uma espécie de acordo entre
encomenderos e administradores, sempre em detrimento dos índios (p.115). Dentre
essas outras disposições, as Ordenanças extinguiam “o serviço pessoal dos 'yanaconas'”(p. 138). Na realidade Alfaro
nada inovou, apenas procurou fazer cumprir a Ordenanças e Cartas Régias
anteriores (p. 131). Mas contra elas insurgiram-se os “encomenderos”. E os
jesuítas,que inicialmente foram bem recebidos pelos espanhóis, na expectativa
de que sua vinda à região contribuísse para diminuir a fuga dos índios,
passaram a ser mal vistos, porque se acreditava (corretamente) que eles eram os
inspiradores daquelas Ordenanças.
As
Ordenanças de Alfaro provocaram protestos dos encomenderos, por serem
consideradas rigorosas, impossíveis de cumprir, dada a realidade da terra
(p.117). Diz Gadelha: “Realmente, não podiam os espanhóis, naquele momento,
libertarem seus índios nem lhes pagarem salário (...)”. Foi por isso também
que até então não se havia cumprido a Carta Régia de 1601, que mandava as
autoridades coloniais compelir os índios a se apresentar em praça pública e
alugar seu trabalho em troca de salário (p.118). Para Gadelha era irrealista,
dada a precariedade econômica do Paraguai, querer suprimir o serviço pessoal,
substituindo-o pelo aluguel da mão-de-obra indígena em troca de salário. Diz a
pesquisadora: “Insurgindo-se contra a prática do serviço pessoal,
levantavam-se os jesuítas contra toda a estrutura, social e econômica, sobre a
qual repousava a sociedade paraguaia” (p. 216) (Gadelha afirma que o tipo
de economia do Paraguai também não permitia a substituição da mão-de-obra
indígena pela do africano, por não dispor de capitais para a sua aquisição
(p.106). Porém, pelo seu território transitava contrabando de negros rumo à
região das minas de Potosi; e por aí descia também contrabando de prata
destinada ao Brasil (p.127, nota 60) ). Assim, ficou letra morta o item das
Ordenanças de Alfaro que extinguia o serviço pessoal. Tanto era verdadeiro o
irrealismo da medida que somente no século XIX os índios guarani do Paraguai
seriam libertos, por um decreto governamental (p. 195-201 e notas 38 e 53 das
p. 206 e 208, respectivamente).
Continuou
a haver portanto a prestação de serviços pessoais, reguladas pelos diversos
dispositivos dos governadores. As Ordenanças de Alfaro seriam motivo de
permanente conflito entre colonos e jesuítas espanhóis, os quais “defendiam a irrestrita liberdade do índio”
(p.118).
Como
as aldeias fixas dos guarani, conforme essas determinações, deviam contar com
assistência religiosa, o provincial padre Diego de Torres mandou para as do
Guairá os padres Cataldino e Maceta. Em carta ânua de 1610 ele informa que
enviou os dois padres para fundar uma missão “em terras do Guairá e Tibajiba” que “tinha por finalidade
impedir a fuga dos índios, motivada pela prestação obrigatória aos espanhóis do
detestado 'serviço pessoal' ” (p.195). De passagem para o Guairá, aqueles
padres já se indispuseram com alguns “vizinhos” em Maracaju por pregarem contra
o serviço pessoal (p. 210). Anteriormente, o padre Torres dera instruções aos
missionários para evitar a entrada de espanhóis nos povoados indígenas sob sua
direção e não permitir saída de índios para prestar serviço pessoal aos
encomenderos (p. 210) (muitas vezes os índios fugiam dos encomenderos e se
refugiavam nas reduções, buscando a proteção dos padres (p.219), os quais se
recusavam a entregá-los depois, quando os encomenderos os reclamavam, com base
no argumento de que eram juridicamente livres e estavam subordinados apenas ao
Rei de Espanha).
O governador Hernandarias e seu
sucessor, Marin de Negrón, adotaram a idéia, defendida pelos jesuítas, de que
as comunidades de índios livres vinculavam-se diretamente à Coroa. Para os
padres, os índios estavam subordinados diretamente ao Rei, “único meio de
assegurar-lhes a liberdade em face dos coloniais” 121. Depois daqueles dois governadores,
porém, diz Lugon, “os administradores coloniais mostraram-se geralmente
hostis”, permitindo que as comunidades guaranis fossem saqueadas e destruídas 122.
Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus (1491-1556) |
103 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá
e o espaço missioneiro”. Cascavel-PR: Coluna do Saber, 2006- p.48-49, 50 e 53.
Lugon informa que o bispo Vitória era
dominicano (cf. “A República...”, op cit, p.28). Schallenberger lembra que os
primeiros jesuítas vieram para o Brasil em 1549, acompanhando o
governador-geral Tomé de Souza, liderados pelo padre Manuel da Nóbrega. Note-se
que a Companhia de Jesus era bem recente ainda, pois havia sido fundada há
apenas nove anos (cf. Lacouture, Jean-- “Os Jesuítas”, Porto Alegre, L&PM,
1994, p.429 e 518). Afonso E. Taunay afirma que os jesuítas se estabeleceram em
Lima em 1572 (cf. “História das Bandeiras Paulistas”, t.I, v.1- São Paulo, Melhoramentos; Brasília, INL,
1975- p. 37).
104 “Aportes de Benjamín
Velilla...”, op cit, p. 132
105
Gadelha, Regina Maria A.F.-- “As Missões...”, op cit, p.117
106 Cf carta ânua do Pe. Nicolau Mastrillo Duran, datada de 12.XI.1628, in
“Jesuítas e Bandeirantes no Guairá”, op cit, p. 209
107
Schallenberger,
Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 61
108 Id. , ibid., p. 62
109 Montoya, Pe. Antonio Ruiz de--
“Conquista espiritual feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas
Províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape”. 2a. ed.- Porto Alegre: Martins
Livreiro-Editor, 1997- p. 37. Em nota, na mesma página, o padre Arthur Rabuske,
S.J. supõe que essa população se refere apenas ao número de espanhóis ou de
famílias espanholas. Por outro lado, a carta ânua de 1609 do padre Diego de
Torres antes citada informava que Villa Rica tinha então 100 vizinhos e Ciudad
Real, 60.
110 Cortesão, Jaime- “Jesuítas...”, op cit,
p. 77. Ver citação de Gadelha mais
adiante (nota 125) em que ela afirma que
o padre Ortega pregou no Guairá por doze anos.
111
Lacouture, Jean-- “Os Jesuítas”, op cit, p. 429
112 Schallenberger, Erneldo-- “O Guairá...”, op cit, p. 50; Montoya, Pe. Antonio Ruiz-- “Conquista...”,
op cit, p. 29. O padre Diego de Torres já foi aqui mencionado anteriormente (cf nota 61)
113 “História Geral da Civilização Brasileira”- sob a direção de Sergio
Buarque de Holanda- t. I, v. 1, 7a ed, São Paulo: Difel, 1985, p. 285-286
114 Schallenberger, Erneldo-- “O
Guairá...”, op cit, p.53 e 57
115
Gadelha, Regina Maria A.F.-- “As Missões...”, op cit, p. 109-110
116 Id., ibid., p. 110 e 130, nota 82
117 Lugon, Clóvis- “A República...”,
op cit, p. 30. Como vimos anteriormente,
Temístocles Linhares fala em trezentos mil guairenhos por volta de 1554, com
base no que disseram os “cronistas”.
118
Lugon,Clóvis - “A República...”, op cit, p. 105
119 Id.,
ibid., p. 30-31
120 Vasconsellos, Victor
Natalicio-- “Lecciones...”, op cit, p. 76
121
Lugon, Clovis- “A República...”, op cit, p.105
122 Id. ,
ibid., p. 31
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