2. OS PRIMITIVOS HABITANTES DA REGIÃO
A História da América
pré-colombiana nos informa que toda a região era habitada antes da chegada dos europeus, durante
milhares de anos, por muitos povos, de diferentes níveis de desenvolvimento,
desde os mais adiantados (inca, maia, asteca, “possuidores de uma
civilização urbana e inventores de uma arte suntuosa” 2)
até os povos tupi-guarani, jê ou tapuia e outros, que se encontravam num estágio
inferior de desenvolvimento. Aí se
incluíam também, certamente, aquelas “hordas nômades dos caçadores
neolíticos”, como os guaicuru ou os charrua, referidas por Lacouture, que
os considera porém “extremamente diferentes” dos guarani, seus
vizinhos.
Vasconsellos menciona os grupos ou tribos que
mais se destacararm na história do continente sul americano: os chibcha
(Colômbia), inca (Peru), araucano (Chile), charrua (Uruguai), guarani e tupi
(Paraguai e Brasil) e os pampeano 3. Este último grupo, de habitantes do rio da
Prata, abrangia os calchaqui ou diaguita (noroeste da Argentina, mais
desenvolvidos, influenciados pelos inca); os paiaguá, ñaperu, guaicuru,
guatata, mbocobi e agace (margem direita do rio Paraguai, na região do Chaco);
os kumegua, abipone, timbu e querandí, estes últimos “sanguinarios y feroces
indios que hicieron despoblar Buenos Aires poco tiempo después de su fundación”
(região do rio Bermejo até Buenos Aires) e por fim os minuane, mbegua, chaná,
bohane, yaro e charrua (região de Entre Rios e Uruguai) 4.
Com relação aos guarani, além
dos tupi, Vasconsellos cita outras
nações índígenas “vinculadas por las tradiciones, la raza y la lengua
comunes”: os cario (imediações de Assunção), itatim (norte do Paraguai e
sul de Mato Grosso do Sul), omagua (mais ao norte, nas margens do Amazonas),
chiriguano (Bolívia), chiripa (região do Guairá), guazurango e guarayo
(proximidade da fronteira do Paraguai com a Bolívia) 5.
Os paiaguá e os guaicuru (índios
cavaleiros) tinham em comum o fato de serem “inimigos seculares” dos
guarani. Eles “jamais foram submetidos” aos espanhóis (ou às reduções),
a quem hostilizavam, atacando-os permanentemente 6.
Os tupi-guarani habitavam extensas
áreas do continente sul americano, abrangendo não só partes dos atuais
territórios do Brasil e Paraguai, mas também do Uruguai, Argentina e Bolívia.
Pertencem a uma mesma família linguística do tronco tupi, de várias línguas e
dialetos, em que se destacam dois deles: o tupi e o guarani, muito semelhantes
entre si. Foram povos tupi os primeiros indígenas contatados pelos portugueses
quando desembarcaram no litoral brasileiro. Posteriormente, eles integraram as
expedições sob o comando dos paulistas que objetivavam a captura de índios guarani
no Guairá. Certamente por isso Lugon os considera mais belicosos que esses
últimos, de natureza dócil e sociável 7.
Hélène Clastres define assim a ampla
área geográfica ocupada por tais indígenas:
Os
Tupi ocupavam a parte média e inferior da bacia do Amazonas e dos principais afluentes da margem direita. Dominavam uma
grande extensão do litoral atlântico, da embocadura do Amazonas até Cananéia. Os Guarani ocupavam a porção do litoral
compreendida entre Cananéia e o Rio
Grande do Sul; a partir daí, estendiam-se para o interior até os rios Paraná, Uruguai e Paraguai. As aldeias indígenas distribuíam-se ao longo
de toda a margem oriental do Paraguai e pelas duas margens do Paraná. Seu território era limitado ao norte pelo rio
Tietê, a oeste pelo rio Paraguai 8.
Detalhando mais a área ocupada pelos
Guarani, assim se expressou Ribeiro:
Os
Guarani ocupavam uma extensa área no Sul banhada pelos três grandes rios, Uruguai, Paraná e Paraguai, que
convergem para o rio da Prata. Corresponde aos atuais territórios do Paraná,
Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, no Brasil, às províncias de Corrientes e Entre-Rios,
na Argentina, enormes porções do Paraguai, e os campos chamados Vacaria,
do Uruguai. 9
Quanto à língua falada pelos
tupi e guarani, o padre Anchieta, da província jesuítica do Brasil, já em 1595
publicava uma gramática tupi, língua que era bem mais falada que o português no
tempo do Brasil Colônia, até o começo do século XVIII, na proporção de três
para um, segundo Teodoro Sampaio, citado por Romário Martins (“História...”, op
cit, p. 111). De acordo com Lugon, Anchieta “teve a idéia de eliminar por um
trabalho metódico as diferenças entre os dialetos”, criando uma “língua
geral” amplamente difundida 10. Informa
o mesmo autor, no tocante ao guarani, que já antes da chegada dos
jesuítas ao Paraguai os franciscanos Luis Bolaños e S. Francisco Solano já
haviam composto um catecismo, uma gramática e um dicionário nessa língua 11.
Mais tarde, em 1640 o Pe. Antonio Ruiz de Montoya (1585–1652 ), o grande incentivador das
reduções jesuíticas no Guairá, publicou a sua gramática guarani, antecedida,
no ano anterior, pela publicação de outro trabalho seu, um vocabulário de tal
língua 12. Para Montoya, que “conhecia a
fundo a língua guarani” nas palavras de Lugon, esta poderia “suportar a
comparação com as mais ricas línguas européias, tanto pela harmonia das
palavras como pela exatidão das expressões. Cada termo é uma definição precisa,
rigorosa” 13. Trata-se de “um idioma rico em expressões
de sentido metafórico” que, além disso, conta “com muitos traços
onomatopaicos” 14
Lugon refere-se à admiração dos
europeus ao constatar que milhares de povoados guarani, espalhados em tão amplo
território, apresentam “em seus traços fisionômicos, em sua cor, em seus
instintos, os vestígios de uma origem comum que se mantém ignorada e, coisa
inexplicável, falam todos a mesma língua”(p.23). Admiram-se que esses
povoados, vivendo “num isolamento social completo, tenham podido conservar a
mesma língua num território mais vasto que a Europa”(p.25).
Quantos eram os guarani que
viviam na América quando os europeus aqui chegaram? Estima-se que seu número
estaria entre 1,4 e 1,5 milhão. A esse respeito Ribeiro afirma o seguinte:
Num
trabalho publicado em 1972, Pierre Clastres calcula a população Guarani do
Brasil, Paraguai, Uruguai e
Argentina, de antes da conquista, tomando por base dados dos cronistas do
século XVI sobre a extensão do
território tribal (350.000 km2), a distância entre as aldeias (9 a 12 km ) e o número médio de habitantes por aldeia (600,
tomado por baixo). Clastres chega à conclusão de que, antes da chegada dos europeus, havia cerca de 1.404.000
Guarani no retângulo compreendido entre o alto
rio Paraguai e a costa atlântica,
com uma média de 4 habitantes por km² 15.
Para Ladeira, conforme artigo seu já
citado, a população guarani no início do século XVI era de, no mínimo, 1,5
milhão pessoas, enquanto hoje, surpreendentemente, é de apenas 35 mil no
Brasil, cerca de 4.500 na Argentina (Misiones) e mais de 45 mil no Paraguai (os
guarani do Brasil assim se compõem: 8
mil nhandeva, 7 mil mbyá e 20 mil kaiová).
A simples comparação do número
original dos guarani (mesmo sem considerar o aumento que naturalmente ocorreria
pelo crescimento vegetativo, na ausência do conquistador) com o número diminuto
dos índios guarani remanescentes hoje em dia, distribuídos por aqueles três
países, mostra bem a intensidade do
ritmo trágico de destruição de um povo, promovida
pelos europeus, ao longo da história.
Já no início da ocupação da América
espanhola, a cobiça dos conquistadores pelos metais preciosos recém-descobertos
fez com que -- para justificar a sua conduta abominável -- negassem a condição
humana dos nativos americanos, o que obrigou o papa Paulo III a lançar uma bula
em 1537 declarando tal condição 16. E a
selvageria daqueles espanhóis (não dos índios) provocou a reação indignada do
frade dominicano Bartolomeu de Las Casas (1474-1566) contra o genocídio que
testemunhava...
***
Os guarani eram um povo seminômade,
que só se fixava por alguns anos numa dada região. Segundo Lacouture, os
guarani (“os etnólogos preferem chamá-los tupi-guaranis”) “mudavam de
território a cada três anos, de queimada em queimada”17. Além de serem “grandes
caçadores”, “praticavam uma agricultura simples em áreas
previamente preparadas por meio de queimadas; como não dispunham de arados de
madeira, mudavam sempre de local, dependendo da colheita e da estação”
(p.432). Mais tarde, após a chegada dos jesuítas, os padres ganhariam muito
prestígio com os índios doando-lhes utensílios de ferro valorizados, “sobretudo
a machadinha cuja introdução transformou a produtividade agrícola”. Também
lhes doavam arpões para a pesca, anzóis
e relhas de arado (p.432).
Nos locais em que se estabeleciam os
guarani asseguravam a própria subsistência recorrendo à caça, à pesca e
desenvolvendo alguma agricultura (milho, mandioca, batata doce, algodão, tabaco).
Quanto à mandioca, uma planta venenosa, os índios realizaram “uma proeza extraordinária”, como
assinala Darcy Ribeiro, ao “extrair-lhe o
ácido cianídrico, tornando-a comestível” 18.
Fabricavam vinho de milho e de mel. Quanto à sua atividade artesanal,
afirma Martin de Moussy, citado por Lugon:
“A fabricação de armas de guerra, de canoas para os transportarem nos
rios, a confecção de alguns ornamentos em plumas, a cerâmica rudimentar, eram
as únicas artes dos guaranis”
(p.134). Mais adiante,
referindo-se à cerâmica, Lugon menciona “os vasos gigantes em que os
guaranis inumavam seus guerreiros gloriosos” (p.137).
A sociedade guarani era uma sociedade
sem Estado. Como diz Lacouture: “O dado básico da sociedade guarani, conforme a
descreveu, entre outros Pierre Clastres em L'Esprit des lois sauvages,
era a ausência de qualquer autoridade estatal, ou antes de qualquer poder
restritivo institucionalizado” 19.
O mesmo autor relativiza
a autoridade dos
caciques, já contrabalançada pela
dos pajés, pois ambos “tinham mais contas a prestar à coletividade do que
meios de coerção em relação a ela”.
Não havia grandes diferenças
sociais entre os membros de tal sociedade, destacando-se porém as figuras
do cacique (chefe da família, líder político) e do feiticeiro-curandeiro.
Constituíram aldeias que congregavam longas habitações (ocas), sem
divisão interna, que abrigavam cem ou duzentas
pessoas, onde tudo era
feito
à vista de todos 20. Sobre isso, e para justificar a atuação dos
padres contra a poligamia, em nome da valorização da mulher e da
estabilidade da vida familiar, Lugon afirma: “(..) antes do estabelecimento
das reduções, os guaranis viviam em galpões coletivos de uma só peça, sem
separação, em grupos de famílias contando até duzentas pessoas. A promiscuidade
era completa. Além disso, os caciques praticavam a poligamia e possuíam
até vinte ou trinta mulheres, que podiam, aliás, abandonar a seu bel-prazer.
Tinham também o direito de exigir as filhas de seus colegas” 21.
Segundo
Lugon os autores antigos são geralmente “pouco lisongeiros para os guaranis”,
apresentando-os “sob as cores mais repulsivas, a fim de justificar melhor os
crimes dos conquistadores” (p.24). Consideram-nos, por exemplo, indolentes,
antropófagos, amantes da pilhagem e da vingança que os tornavam “mais
furiosos que valentes” (o nome “guarani” significa “guerreiro”). Mas tudo
isso para Lugon “não passa de caricatura. Pelo fato de que duas ou três
tribos imolavam ritualmente, após um combate, um único prisioneiro, não se tem
o direito de descrever a raça guarani, em geral, como antropófaga”(p.34).
Cita Charlevoix (autor de uma “Histoire du Paraguay”) que, como outros
autores, destaca “o pendor
socialmente dócil e sociável dos guaranis, que convivem com os europeus mais
espontaneamente do que os outros povos da América” (p.24). Aliás,
acrescento eu, a viagem de Cabeza de Vaca e outros europeus pelas terras
paranaenses não teria sido possível sem o auxílio desses indígenas.
Afirma
ainda o abade suíço: “Certas
tribos admitiam a
poligamia. Na região
de Guairá, onde os jesuítas
iriam fundar as primeiras reduções, somente os caciques possuíam várias
mulheres.
Os guaranis acreditavam num só Deus,
a quem não rendiam qualquer culto exterior, nem ofereciam
sacrifícios. Não existiam sacerdotes” (p.26).
Mas, complementa esse autor, havia
médicos-feiticeiros que supostamente extraíam a causa da enfermidade no corpo
usando um artifício (“fingiam extrair qualquer coisa que tinham
antecipadamente metido na boca”, conforme Charlevoix). Ademais, interpretavam o canto dos pássaros e prediziam o
futuro, além de lançar pragas sobre os adversários.
Na área da botânica, os guarani
conheciam as propriedades medicinais e alimentares das plantas. A medicina
guarani baseava-se em plantas medicinais e em produtos de origem animal 22.
Uma característica marcante dos
guarani é a sua migração constante, interpretada pelos estudiosos como a busca
da mítica “terra sem mal” (yvy marãey) 23.
Abordando
o aspecto religioso, Lacouture afirma que certas tribos tupi-guarani
eram animistas (buscavam defender-se contra os demônios “donos da floresta e
das tempestades”; as divindades eram impiedosas, sendo a mais temível delas
Tupã, “senhor do trovão”). Mas outras tribos “acreditavam num Ser
superior, senhor do 'País sem o mal', uma espécie de paraíso em que os justos,
conduzidos por um 'herói civilizador', seriam um dia recebidos. Elas
reverenciavam um certo Pai-Sumé em que os jesuítas fingiram reencontrar
um São Tomé que teria não apenas evangelizado as Índias orientais como também
as ocidentais” 24. Lacouture afirma ainda, apoiando-se em Roger Lacombe , que
havia um certo messianismo nos tupi-guarani, característica dos povos nômades.
Acreditavam numa terra prometida, origem do mito do Eldorado, “assim chamado
pelos conquistadores porque o ouro ali abundaria-- ouro que aparentemente
era negligenciado pelos 'selvagens', assim como por seus missionáros. A
ausência comum de cobiça criou entre eles o vínculo talvez mais sólido”.
(p. 434)
Para Lacouture, essas crenças e mitologias dos guarani
(Pai-Sumé, país “sem mal”, “herói civilizador”, vago messianismo) podiam
predispô-los a receber a pregação dos jesuítas do Deus único e de um além (p. 455).
Ainda no campo da religiosidade dos
guarani, o mesmo autor constata a tendência dos
índios a não distinguir o natural do sobrenatural. E também de que “eram pouco acessíveis à ideia do pecado” (p.
455).
Faris Michaele, em sua contribuição
para o volume 3 da História do Paraná (ed. Grafipar), 25 aborda
aspectos da cultura material e espiritual dos nossos indígenas.
No âmbito da “cultura material”
trata das habitações, vestuário e ornamentações, vida econômica, arte
culinária, atividades industriais etc. Desses assuntos, destaco dois, não
abordados nas páginas anteriores desta monografia.
Com relação ao vestuário e
ornamentação, escreve Michaele:
Os tupis-guaranis,
por via de regra, como quase todos os povos em estado natural, possuiam pouca
ou nenhuma roupa. (...) As tribos da
costa, quando muito, ensaiavam um princípio de tanga. Mas os nossos guaranis, pelo testemunho já dos
cronistas do século XVI, lançavam mão de um manto de peles para se abrigarem do frio intenso desta região. As
mulheres usavam uma faixa para carregar as crianças. Era a tipoya, que passou ao português
(...). Homens e mulheres untavam o corpo, pintavam-no e nele desenhavam ondas, espirais e
faixas. Aliás, o desenho era o seu forte como também o era, em certas tribos, a ornamentação feita com penas. A
pintura tinha várias finalidades: libertar dos mosquitos, defender do sol tropical e evitar a
aproximação dos maus espíritos (...) Algumas tribos praticavam, também, a tatuagem, que parece quase
inexistente entre os nossos guaranis (p. 30-31).
Quanto à culinária, diz Michaele que
os tupis-guaranis faziam da mandioca farinha, bebidas fermentadas etc; do
milho, a pamonha, pipoca, canjica, farinha, bebidas fermentadas; do peixe, a
paçoca (carne esmagada no pilão e misturada com farinha) e a moqueca (peixe
assado envolto em folhas de árvores) (p. 35-36).
Relativamente à “cultura espiritual”
dos tupi-guarani, Michaele demonstra, frequentemente indicando a sua expressão
linguística, que eles possuiam conhecimentos astronômicos, anatômicos,
zoológicos e botânicos, conhecimento do poder curativo das plantas. Mostra
também que, além de religião, possuiam literatura e direito.
Segundo essse autor, pelos astros os
tupi-guarani “orientavam as suas marchas e expedições guerreiras; através
deles, controlavam as suas relativamente adiantadas lavouras; e com eles,
regulavam toda uma cronologia, sem falar nos mitos e crendices que, ainda, os
mesmos lhes inspiravam” (p. 39-40)
Quanto ao corpo humano, chegaram
também a uma “bem desenvolvida terminologia anatômica” (p.42), da qual
Michaele dá uma série de exemplos.
“Sabiam tudo a respeito dos
animais e vegetais: formas, modos de vida, qualidades ou propriedades etc
(p.43) (...) as raízes dos nomes indígenas foram sendo incorporadas à
terminologia científica internacional, de modo que, hoje, a família tupi-guarani
figura em segundo lugar nas designações botânicas e quase tal, nas zoológicas”
(p.43).
Exibiram “aos viajantes,
cronistas e missionários da fase colonial, já, um profundo conhecimento das
propriedades terapêuticas da flora brasileira” (p.45-46). O índio no Brasil
“se familiarizou com os segredos curativos de mais de setenta plantas e
frutos”, arrolados por Michaele na p. 46. Segundo este, “Até os
bandeirantes apelavam para a botica da selva....” (p.47)
Sua literatura é enorme, abrangendo
“quatro séculos de composições em prosa e verso” (p.48). O autor, a
partir da p. 50, dá mostras de tal literatura, transcrevendo contos, trovas e
provérbios, a princípio integrantes da sua literatura oral.
Quanto ao direito consuetudinário
indígena, segundo Michaele ele abrange a família (com terminologia mais
complexa que a das línguas européias para o parentesco- p.59), a propriedade
(reconhecendo seu caráter individual com relação a certos bens como armas,
redes, troféus etc, embora “os índios vivessem num regime comunitário”-
p.59), os tratados intertribais, a sua organização político-social, as sanções
penais etc
Referindo-se aos elementos
religiosos dos nosos índios, Michaele destaca “o culto natural dos elementos
cósmicos: sol, lua etc.”, os heróis civilizadores (um deles é Sumé,
confundido com o apóstolo S. Tomé), os gênios bons e maus “ligados aos
elementos naturais” (exs: Anhangá, Boitatá, Curupira, Caapora, Saci
Pererê), o pajé e o caraíba (este, “um homem santo, que ia de tribo em
tribo, prometendo fazer chover, crescer as plantas, eliminar as moléstias, os
inimigos e outras coisas mais”), além da crença na “Terra onde não se
morre e que devia ser procurada pela tribo”, que provocou as constantes
migrações tupis-guaranis (p.61).
A propósito, quanto ao aspecto
religioso, Romário Martins afirma que além de Tupã, os nossos índios tinham
outras divindades, hierarquicamente inferiores, como Guaraci (o Sol), “sob
cujos auspícios se desenvolvia a vida animal”, Jaci (a Lua) “que
presidia a vida vegetal” e Rudá (o deus do amor). Afirma também que tais
índios não tinham a concepção de satanás, mas acreditavam em “semideuses
pagãos” protetores dos animais do campo (Anhangá), da floresta (Curupira) e
dos animais da mata (Caapora) 26.
Faris Michaele conclui suas
observações sobre os tupi-guarani na obra citada abordando a influência das
suas “qualidades de caráter” sobre o
brasileiro, de acordo com diversos escritores que trataram do tema: “o
fatalismo, a improvisação, a imprevidência, o desprendimento, a indolência, a
fraternidade, o misticismo messiânico etc” (p.63). No que se refere a esta
última qualidade, o autor anteriormente destacara sua influência sobre os
messianismos caboclos, como os do Contestado e Canudos (p.62).
As considerações anteriores procuraram
fazer uma caracterização geral dos índios guarani, ou de forma mais abrangente tupi-guarani,
na ampla região no continernte sulamericano ocupada por “uma miríade de
povos tribais, falando línguas do mesmo tronco, dialetos de uma mesma língua” 27.
Supõe-se que as características apontadas seriam aplicáveis também aos índios
dessa família presentes no território hoje paranaense.
A presença desses índios aqui é
confirmada não só pelos relatos dos viajantes mas também pela designação tupi
de acidentes geográficos, nomes de lugares, de animais, plantas etc. Faris
Michaele, na obra citada (p. 23), afirma que o Paraná é “chão
preponderantemente guarani”. Por
outro lado, Romário Martins, em sua “História do Paraná”, arrola 41 tribos tupi
presentes em nosso território. Além dos guarani -- os “tupi do sul”,
como os chama (p. 112) -- que habitavam segundo ele o sertão compreendido entre
os rios Paranapanema, Paraná, Tibagi e Iguaçu, cita os carijó (ou
cario), presentes no litoral (na realidade, outro nome para os guarani do
litoral), indígenas que, miscigenados com os portugueses, contribuiriam para a
formação da população paranaense mais tradicional. Diz Martins, que fugindo do
litoral, após a região ser assolada pelas bandeiras preadoras de índios, eles
surgirão no vale do Paranapanema e no baixo Iguaçu. Algumas outras tribos tupi
citadas por esse mesmo autor: a dos tingui, habitantes da região de
Curitiba; dos caiuá, do vale do Paranapanema; dos campeiro, à
esquerda do rio Tibagi; dos teminimó, da região entre os rios Piquiri e
Tibagi (que habitavam as imediações de Villa Rica segundo A.E.Taunay, citado
por Martins); dos chiripá, da foz do rio Piquiri ao Iguaçu etc (op cit,
p.29-38).
A outra família ou etnia indígena
aqui também presente, na época do Paraná espanhol, era a dos jê ou tapuia (cf
Michaele, op cit, p. 25-27). Os antigos chamavam “tapuia” todos os índios que
não pertenciam à família lingüística tupi-guarani. Abrange, em nosso caso,
basicamente os caingangue, que após o desaparecimento das vilas espanholas e
reduções jesuíticas do Guairá, ocuparam o território abandonado pelos guarani, sobre
quem principalmente os padres haviam exercido o seu trabalho missionário. Mas
os índios das reduções não eram exclusivamente guarani, embora fossem
certamente maioria. Como veremos, elas também envolveram índios gualacho,
guaianá e coroado.
***
Dois anos após o descobrimento da
América celebrou-se o Tratado de Tordesilhas, aprovado pelo papa
Alexandre VI. De acordo com ele, as terras recém-descobertas (ou por descobrir,
nas quais se incluía o território brasileiro) passavam a pertencer ou à Espanha
ou a Portugal.
O meridiano definido pelo Tratado
situava-se, de polo a polo, a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde.
Assim, a maior parte do território brasileiro pertenceria à Espanha, a quem
cabiam as terras a oeste desse meridiano, o qual, no entendimento de Portugal,
passava por Belém do Pará e Laguna, em Santa Catarina ,
cabendo a esse país as terras a leste daquela linha imaginária. Todavia o ponto meridional extremo era
incerto: para os espanhóis ele não se localizava em Laguna e sim em Iguape, no
litoral sul de São Paulo. Neste caso, todo o território do atual Estado do Paraná
seria espanhol. Pelo critério anterior, só não seria espanhol o nosso
litoral, até a Serra do Mar 28.
Ao longo do tempo, em consequência
da ação dos bandeirantes (que aqui provocaram o desaparecimento das reduções
jesuíticas e vilas espanholas) e ao “uti possidetis”, ignorou-se o
meridiano de Tordesilhas e se conquistou para Portugal o território hoje
brasileiro (e paranaense). Essa situação de fato foi reconhecida juridicamente
pelos tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777).
2 Lacouture, Jean- “Os jesuítas”- v.1- Os conquistadores. Porto
Alegre: L&PM, 1994- p.432
3 Vasconsellos,
Victor Natalício-- “Lecciones
de Historia Paraguaya”- 6a ed.- Asunción: Ed. do Autor, 1970- p.11. Cf mapas
nas pp.12 e 19. Ver também mapa em “Ser Índio Hoje” de Katsue Hamada e Zenun e
Valeria Maria Alves Adissi. São Paulo: Ed. Loyola, 1998- p.82
4 Vasconsellos, Victor Natalicio-- “Lecciones ...”, op
cit, p. 13-14
5 Id., ibid, p. 14; cario=carijó (cf Martins,
Romário- “História do Paraná- 3a. ed-
Curitiba: Editora Guaíra, s/d.- p.36; o mesmo autor, na p. 37, afirma que os
chiripá habitavam a “zona que se estende
da margem direita do rio Paraná à foz do Piquiri e ao Iguaçu, na altura
correspondente à foz do Santo Antonio”)
6 Cf. entrevista de Rafael Eladio Velazquez in
“República Guarani”, de Sílvio Back- 2a ed.- Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982-
p. 80 e 85.
7 Lugon,
Clóvis-- “A República 'Comunista' Cristã dos Guaranis:
1610-1768”- 3a.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977-p. 24
8 Citada por Maria Inês Ladeira- “Terra em movimento: a luta do povo
guarani” in “História Viva” ano IV, nº 40, p.80-85
9 Ribeiro,
Berta- “O Índio na História do Brasil”- 9a ed- S.Paulo: Global Ed., 2000, p.58-59
10 Lugon,
Clóvis- “A República...”, op cit, p. 213, nota
11 Id., ibid., p. 25
12 Enciclopédia
Abril, 2a. ed- S.Paulo: Ed. Abril, 1976- v.12 (verbete “Tupi-Guarani”)-
p. 204
13 Lugon,
Clóvis- “A República...”, op cit, p.213
14 Enciclopédia Mirador Internacional. São Paulo:
Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda, 1987- v.11, p.5531 (verbete “Guarani”, a cargo de
Moacir Werneck de Castro e Antônio Houaiss)
15 Ribeiro, Berta- “O Índio ..., op cit, p. 30. Quanto ao Brasil, Darcy
Ribeiro afirma que tribos do tronco tupi, na época do descobrimento, “Somavam, talvez, 1 milhão de índios, divididos em dezenas de grupos tribais, cada
um deles compreendendo um conglomerado de várias aldeias de trezentos a 2 mil
habitantes” (Ribeiro, Darcy- “O Povo Brasileiro: a formação e o
sentido do Brasil”. S.Paulo: Companhia das Letras (Companhia de Bolso), 2006-
p. 28)
16 Id., ibid., p. 31
17 Lacouture, Jean- “Os Jesuítas”, op cit, p. 453
18 Ribeiro, Darcy- “O Povo...”, op
cit, p. 28
19 Lacouture, Jean- “Os Jesuítas”, op cit, p. 433
20 Cf. citação do Pe. Fernão
Cardim in Ribeiro, Berta-- “O Índio ..., op cit, p. 45. Mais adiante, nesta
monografia, transcrevo a definição que o padre Montoya dá de “redução”. Ele
afirma aí que nas aldeias os índios viviam em três, quatro ou seis casas
apenas. Se cem ou duzentas pessoas viviam em cada casa, a população das aldeias
podia variar de trezentas a mil e duzentas pessoas. Há pouco vimos que Pierre
Clastres considera 600 (ou mais) o número médio de habitantes por aldeia.
21 Lugon,
Clóvis- “A República..”, op cit, p. 201
22 Benitez, Luiz G.- “Manual de
Historia Paraguaya”-Asunción: Imprenta Comuneros S.R.L., s/d.- p.13
23 Ladeira, Maria Inês- “Terra em movimento: a
luta do povo guarani” in “História Viva” ano IV, nº 40, p.80-85
24 Lacouture, Jean- “Os jesuítas”, op cit, p. 433-434
25 Michaele, Faris Antonio S.-
“Presença do Índio no Paraná”, p.11-69, in “História do Paraná”- 2a ed, Curitiba:
Grafipar, 1969
26 Martins, Romário- “História ...”, op
cit, p. 108
27 Ribeiro, Darcy- “O Povo...”, op cit, p. 26
28 Martins, Romário- “História...”, op cit, p.54
Nenhum comentário:
Postar um comentário