terça-feira, 9 de outubro de 2012


 2. OS PRIMITIVOS HABITANTES DA REGIÃO


Debret- carga de cavalaria Guaicuru

            A História da América pré-colombiana nos informa que toda a região era habitada  antes da chegada dos europeus, durante milhares de anos, por muitos povos, de diferentes níveis de desenvolvimento, desde os mais adiantados (inca, maia, asteca, “possuidores de uma civilização urbana e inventores de uma arte suntuosa 2) até os povos tupi-guarani, jê ou tapuia e outros, que se encontravam num estágio inferior de desenvolvimento. Aí se  incluíam também, certamente, aquelas “hordas nômades dos caçadores neolíticos”, como os guaicuru ou os charrua, referidas por Lacouture, que os considera porém “extremamente diferentes” dos guarani, seus vizinhos.  

             Vasconsellos menciona os grupos ou tribos que mais se destacararm na história do continente sul americano: os chibcha (Colômbia), inca (Peru), araucano (Chile), charrua (Uruguai), guarani e tupi (Paraguai e Brasil) e os pampeano 3.  Este último grupo, de habitantes do rio da Prata, abrangia os calchaqui ou diaguita (noroeste da Argentina, mais desenvolvidos, influenciados pelos inca); os paiaguá, ñaperu, guaicuru, guatata, mbocobi e agace (margem direita do rio Paraguai, na região do Chaco); os kumegua, abipone, timbu e querandí, estes últimos “sanguinarios y feroces indios que hicieron despoblar Buenos Aires poco tiempo después de su fundación” (região do rio Bermejo até Buenos Aires) e por fim os minuane, mbegua, chaná, bohane, yaro e charrua (região de Entre Rios e Uruguai) 4.

            Com relação aos guarani, além dos  tupi, Vasconsellos cita outras nações índígenas “vinculadas por las tradiciones, la raza y la lengua comunes”: os cario (imediações de Assunção), itatim (norte do Paraguai e sul de Mato Grosso do Sul), omagua (mais ao norte, nas margens do Amazonas), chiriguano (Bolívia), chiripa (região do Guairá), guazurango e guarayo (proximidade da fronteira do Paraguai com a Bolívia) 5

            Os paiaguá e os guaicuru (índios cavaleiros) tinham em comum o fato de serem “inimigos seculares” dos guarani. Eles “jamais foram submetidos” aos espanhóis (ou às reduções), a quem hostilizavam, atacando-os permanentemente 6.
                                                                                                                                              
            Os tupi-guarani habitavam extensas áreas do continente sul americano, abrangendo não só partes dos atuais territórios do Brasil e Paraguai, mas também do Uruguai, Argentina e Bolívia. Pertencem a uma mesma família linguística do tronco tupi, de várias línguas e dialetos, em que se destacam dois deles: o tupi e o guarani, muito semelhantes entre si. Foram povos tupi os primeiros indígenas contatados pelos portugueses quando desembarcaram no litoral brasileiro. Posteriormente, eles integraram as expedições sob o comando dos paulistas que objetivavam a captura de índios guarani no Guairá. Certamente por isso Lugon os considera mais belicosos que esses últimos, de natureza dócil e sociável 7.

            Hélène Clastres define assim a ampla área geográfica ocupada por tais indígenas:

Os Tupi ocupavam a parte média e inferior da bacia do Amazonas e dos principais afluentes da margem direita. Dominavam uma grande extensão do litoral atlântico, da embocadura do Amazonas até Cananéia. Os Guarani ocupavam a porção do litoral compreendida entre Cananéia e o Rio Grande do Sul; a partir daí, estendiam-se para o interior até os rios Paraná, Uruguai e Paraguai. As  aldeias indígenas distribuíam-se ao longo de toda a margem oriental do Paraguai e pelas duas margens do Paraná.  Seu território era limitado ao norte pelo rio Tietê, a oeste pelo rio Paraguai 8.

            Detalhando mais a área ocupada pelos Guarani, assim se expressou Ribeiro:

Os Guarani ocupavam uma extensa área no Sul banhada pelos três grandes rios,  Uruguai, Paraná e Paraguai, que convergem para o rio da Prata. Corresponde aos atuais  territórios do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, no Brasil, às  províncias de Corrientes e Entre-Rios,  na Argentina, enormes porções do Paraguai, e os campos chamados Vacaria, do  Uruguai. 9

            Quanto à língua falada pelos tupi e guarani, o padre Anchieta, da província jesuítica do Brasil, já em 1595 publicava uma gramática tupi, língua que era bem mais falada que o português no tempo do Brasil Colônia, até o começo do século XVIII, na proporção de três para um, segundo Teodoro Sampaio, citado por Romário Martins (“História...”, op cit, p. 111). De acordo com Lugon, Anchieta “teve a idéia de eliminar por um trabalho metódico as diferenças entre os dialetos”, criando uma “língua geral” amplamente difundida 10.  Informa  o mesmo autor, no tocante ao guarani, que já antes da chegada dos jesuítas ao Paraguai os franciscanos Luis Bolaños e S. Francisco Solano já haviam composto um catecismo, uma gramática e um dicionário nessa língua 11.  Mais tarde, em 1640 o Pe. Antonio Ruiz de Montoya  (1585–1652 ), o grande incentivador das reduções jesuíticas no Guairá, publicou a sua gramática guarani, antecedida, no ano anterior, pela publicação de outro trabalho seu, um vocabulário de tal língua 12. Para Montoya, que “conhecia a fundo a língua guarani” nas palavras de Lugon, esta poderia “suportar a comparação com as mais ricas línguas européias, tanto pela harmonia das palavras como pela exatidão das expressões. Cada termo é uma definição precisa, rigorosa 13 Trata-se de “um idioma rico em expressões de sentido metafórico” que, além disso, conta “com muitos traços onomatopaicos” 14

            Lugon refere-se à admiração dos europeus ao constatar que milhares de povoados guarani, espalhados em tão amplo território, apresentam “em seus traços fisionômicos, em sua cor, em seus instintos, os vestígios de uma origem comum que se mantém ignorada e, coisa inexplicável, falam todos a mesma língua”(p.23). Admiram-se que esses povoados, vivendo “num isolamento social completo, tenham podido conservar a mesma língua num território mais vasto que a Europa”(p.25).

            Quantos eram os guarani que viviam na América quando os europeus aqui chegaram? Estima-se que seu número estaria entre 1,4 e 1,5 milhão. A esse respeito Ribeiro afirma o seguinte: 

Num trabalho publicado em 1972, Pierre Clastres calcula a população Guarani do Brasil,  Paraguai, Uruguai e Argentina, de antes da conquista, tomando por base dados dos cronistas do século XVI sobre a extensão do território tribal (350.000 km2), a distância entre as aldeias (9 a 12 km) e o número médio de habitantes por aldeia (600, tomado por baixo). Clastres chega à conclusão de que, antes da chegada dos europeus, havia cerca de 1.404.000 Guarani no retângulo compreendido entre o    alto rio Paraguai e a costa atlântica, com uma média de 4 habitantes por km² 15.

            Para Ladeira, conforme artigo seu já citado, a população guarani no início do século XVI era de, no mínimo, 1,5 milhão pessoas, enquanto hoje, surpreendentemente, é de apenas 35 mil no Brasil, cerca de 4.500 na Argentina (Misiones) e mais de 45 mil no Paraguai (os guarani do Brasil assim se compõem:  8 mil nhandeva, 7 mil mbyá e 20 mil kaiová).

            A simples comparação do número original dos guarani (mesmo sem considerar o aumento que naturalmente ocorreria pelo crescimento vegetativo, na ausência do conquistador) com o número diminuto dos índios guarani remanescentes hoje em dia, distribuídos por aqueles três países, mostra bem a intensidade  do ritmo  trágico de  destruição de um povo, promovida pelos europeus, ao longo da história. 

            Já no início da ocupação da América espanhola, a cobiça dos conquistadores pelos metais preciosos recém-descobertos fez com que -- para justificar a sua conduta abominável -- negassem a condição humana dos nativos americanos, o que obrigou o papa Paulo III a lançar uma bula em 1537 declarando tal condição 16. E a selvageria daqueles espanhóis (não dos índios) provocou a reação indignada do frade dominicano Bartolomeu de Las Casas (1474-1566) contra o genocídio que testemunhava...

                                                           ***

            Os guarani eram um povo seminômade, que só se fixava por alguns anos numa dada região. Segundo Lacouture, os guarani (“os etnólogos preferem chamá-los tupi-guaranis”) “mudavam de território a cada três anos, de queimada em queimada”17. Além de serem “grandes caçadores”, “praticavam uma agricultura simples em áreas previamente preparadas por meio de queimadas; como não dispunham de arados de madeira, mudavam sempre de local, dependendo da colheita e da estação” (p.432). Mais tarde, após a chegada dos jesuítas, os padres ganhariam muito prestígio com os índios doando-lhes utensílios de ferro valorizados, “sobretudo a machadinha cuja introdução transformou a produtividade agrícola”. Também lhes doavam arpões para a  pesca, anzóis e relhas de arado (p.432).

            Nos locais em que se estabeleciam os guarani asseguravam a própria subsistência recorrendo à caça, à pesca e desenvolvendo alguma agricultura (milho, mandioca, batata doce, algodão, tabaco). Quanto à mandioca, uma planta venenosa, os índios realizaram “uma proeza extraordinária”, como assinala Darcy Ribeiro, ao “extrair-lhe o ácido cianídrico, tornando-a comestível” 18. Fabricavam vinho de milho e de mel. Quanto à sua atividade artesanal, afirma Martin de Moussy, citado por Lugon:  “A fabricação de armas de guerra, de canoas para os transportarem nos rios, a confecção de alguns ornamentos em plumas, a cerâmica rudimentar, eram as únicas artes dos guaranis” (p.134).  Mais adiante, referindo-se à cerâmica, Lugon menciona “os vasos gigantes em que os guaranis inumavam seus guerreiros gloriosos” (p.137).

            A sociedade guarani era uma sociedade sem Estado. Como diz Lacouture:  “O  dado básico da sociedade guarani, conforme a descreveu, entre outros Pierre Clastres em L'Esprit des lois sauvages, era a ausência de qualquer autoridade estatal, ou antes de qualquer poder restritivo   institucionalizado 19.  O mesmo  autor   relativiza  a  autoridade  dos  caciques,  já contrabalançada pela dos pajés, pois ambos “tinham mais contas a prestar à coletividade do que meios de coerção em relação a ela”. 

            Não havia grandes diferenças sociais entre os membros de tal sociedade, destacando-se porém as figuras do cacique (chefe da família, líder político) e do feiticeiro-curandeiro. Constituíram aldeias que congregavam longas habitações (ocas), sem divisão interna, que abrigavam  cem  ou duzentas  pessoas,  onde  tudo  era  feito  à   vista  de  todos 20 Sobre isso, e para justificar a atuação dos padres contra a poligamia, em nome da valorização da mulher e da estabilidade da vida familiar, Lugon afirma: “(..) antes do estabelecimento das reduções, os guaranis viviam em galpões coletivos de uma só peça, sem separação, em grupos de famílias contando até duzentas pessoas. A promiscuidade era completa. Além disso, os caciques praticavam a poligamia e possuíam até vinte ou trinta mulheres, que podiam, aliás, abandonar a seu bel-prazer. Tinham também o direito de exigir as filhas de seus colegas” 21.

            Segundo Lugon os autores antigos são geralmente “pouco lisongeiros para os guaranis”, apresentando-os “sob as cores mais repulsivas, a fim de justificar melhor os crimes dos conquistadores” (p.24). Consideram-nos, por exemplo, indolentes, antropófagos, amantes da pilhagem e da vingança que os tornavam “mais furiosos que valentes” (o nome “guarani” significa “guerreiro”). Mas tudo isso para Lugon “não passa de caricatura. Pelo fato de que duas ou três tribos imolavam ritualmente, após um combate, um único prisioneiro, não se tem o direito de descrever a raça guarani, em geral, como antropófaga”(p.34). Cita Charlevoix (autor de uma “Histoire du Paraguay”) que, como outros autores,  destaca “o pendor socialmente dócil e sociável dos guaranis, que convivem com os europeus mais espontaneamente do que os outros povos da América” (p.24). Aliás, acrescento eu, a viagem de Cabeza de Vaca e outros europeus pelas terras paranaenses não teria sido possível sem o auxílio desses indígenas.

            Afirma ainda o abade suíço: “Certas  tribos  admitiam  a  poligamia.  Na  região  de   Guairá, onde os jesuítas iriam fundar as primeiras reduções, somente os caciques possuíam várias mulheres.

            Os guaranis acreditavam num só Deus, a quem não rendiam qualquer culto exterior, nem ofereciam sacrifícios. Não existiam sacerdotes” (p.26).

            Mas, complementa esse autor, havia médicos-feiticeiros que supostamente extraíam a causa da enfermidade no corpo usando um artifício (“fingiam extrair qualquer coisa que tinham antecipadamente metido na boca”, conforme Charlevoix).  Ademais,   interpretavam     o  canto dos pássaros e prediziam  o  futuro, além de lançar pragas sobre os adversários.
  
            Na área da botânica, os guarani conheciam as propriedades medicinais e alimentares das plantas. A medicina guarani baseava-se em plantas medicinais e em produtos de origem animal 22.
            Uma característica marcante dos guarani é a sua migração constante, interpretada pelos estudiosos como a busca da mítica “terra sem mal” (yvy marãey) 23.      

            Abordando o aspecto religioso, Lacouture afirma que certas tribos tupi-guarani eram animistas (buscavam defender-se contra os demônios “donos da floresta e das tempestades”; as divindades eram impiedosas, sendo a mais temível delas Tupã, “senhor do trovão”). Mas outras tribos “acreditavam num Ser superior, senhor do 'País sem o mal', uma espécie de paraíso em que os justos, conduzidos por um 'herói civilizador', seriam um dia recebidos. Elas reverenciavam um certo Pai-Sumé em que os jesuítas fingiram reencontrar um São Tomé que teria não apenas evangelizado as Índias orientais como também as ocidentais” 24.     Lacouture afirma ainda, apoiando-se em Roger Lacombe, que havia um certo messianismo nos tupi-guarani, característica dos povos nômades. Acreditavam numa terra prometida, origem do mito do Eldorado, “assim chamado pelos conquistadores porque o ouro ali abundaria-- ouro que aparentemente era negligenciado pelos 'selvagens', assim como por seus missionáros. A ausência comum de cobiça criou entre eles o vínculo talvez mais sólido”. (p. 434)

            Para Lacouture, essas crenças e mitologias dos guarani (Pai-Sumé, país “sem mal”, “herói civilizador”, vago messianismo) podiam predispô-los a receber a pregação dos jesuítas do Deus único e de um além (p. 455).  Ainda no campo da religiosidade dos guarani, o mesmo autor constata a tendência  dos  índios a não distinguir o natural do sobrenatural. E também de que “eram  pouco acessíveis à ideia do pecado” (p. 455).

            Faris Michaele, em sua contribuição para o volume 3 da História do Paraná (ed. Grafipar)25 aborda aspectos da cultura material e espiritual dos nossos indígenas.

            No âmbito da “cultura material” trata das habitações, vestuário e ornamentações, vida econômica, arte culinária, atividades industriais etc. Desses assuntos, destaco dois, não abordados nas páginas anteriores desta monografia.

            Com relação ao vestuário e ornamentação, escreve Michaele:

Os tupis-guaranis, por via de regra, como quase todos os povos em estado natural, possuiam pouca ou    nenhuma roupa. (...) As tribos da costa, quando muito, ensaiavam um princípio de tanga. Mas os nossos guaranis, pelo testemunho já dos cronistas do século XVI, lançavam mão de um manto de peles para se  abrigarem do frio intenso desta região. As mulheres usavam uma faixa para carregar as crianças. Era a tipoya, que passou ao português (...). Homens e mulheres untavam o corpo, pintavam-no e nele desenhavam ondas, espirais e faixas. Aliás, o desenho era o seu forte como também o era, em certas tribos, a ornamentação feita com penas. A pintura tinha várias finalidades: libertar dos mosquitos, defender do sol tropical e evitar a aproximação dos maus espíritos (...) Algumas tribos praticavam,  também, a tatuagem, que parece quase inexistente entre os nossos guaranis (p. 30-31).

            Quanto à culinária, diz Michaele que os tupis-guaranis faziam da mandioca farinha, bebidas fermentadas etc; do milho, a pamonha, pipoca, canjica, farinha, bebidas fermentadas; do peixe, a paçoca (carne esmagada no pilão e misturada com farinha) e a moqueca (peixe assado envolto em folhas de árvores) (p. 35-36).

            Relativamente à “cultura espiritual” dos tupi-guarani, Michaele demonstra, frequentemente indicando a sua expressão linguística, que eles possuiam conhecimentos astronômicos, anatômicos, zoológicos e botânicos, conhecimento do poder curativo das plantas. Mostra também que, além de religião, possuiam literatura e direito.

            Segundo essse autor, pelos astros os tupi-guarani “orientavam as suas marchas e expedições guerreiras; através deles, controlavam as suas relativamente adiantadas lavouras; e com eles, regulavam toda uma cronologia, sem falar nos mitos e crendices que, ainda, os mesmos lhes inspiravam” (p. 39-40)

            Quanto ao corpo humano, chegaram também a uma “bem desenvolvida terminologia anatômica” (p.42), da qual Michaele dá uma série de exemplos.

            “Sabiam tudo a respeito dos animais e vegetais: formas, modos de vida, qualidades ou propriedades etc (p.43) (...) as raízes dos nomes indígenas foram sendo incorporadas à terminologia científica internacional, de modo que, hoje, a família tupi-guarani figura em segundo lugar nas designações botânicas e quase tal, nas zoológicas” (p.43).

            Exibiram “aos viajantes, cronistas e missionários da fase colonial, já, um profundo conhecimento das propriedades terapêuticas da flora brasileira” (p.45-46). O índio no Brasil “se familiarizou com os segredos curativos de mais de setenta plantas e frutos”, arrolados por Michaele na p. 46. Segundo este, “Até os bandeirantes apelavam para a botica da selva....” (p.47)

            Sua literatura é enorme, abrangendo “quatro séculos de composições em prosa e verso” (p.48). O autor, a partir da p. 50, dá mostras de tal literatura, transcrevendo contos, trovas e provérbios, a princípio integrantes da sua literatura oral.

            Quanto ao direito consuetudinário indígena, segundo Michaele ele abrange a família (com terminologia mais complexa que a das línguas européias para o parentesco- p.59), a propriedade (reconhecendo seu caráter individual com relação a certos bens como armas, redes, troféus etc, embora “os índios vivessem num regime comunitário”- p.59), os tratados intertribais, a sua organização político-social, as sanções penais etc

            Referindo-se aos elementos religiosos dos nosos índios, Michaele destaca “o culto natural dos elementos cósmicos: sol, lua etc.”, os heróis civilizadores (um deles é Sumé, confundido com o apóstolo S. Tomé), os gênios bons e maus “ligados aos elementos naturais” (exs: Anhangá, Boitatá, Curupira, Caapora, Saci Pererê), o pajé e o caraíba (este, “um homem santo, que ia de tribo em tribo, prometendo fazer chover, crescer as plantas, eliminar as moléstias, os inimigos e outras coisas mais”), além da crença na “Terra onde não se morre e que devia ser procurada pela tribo”, que provocou as constantes migrações tupis-guaranis (p.61).

            A propósito, quanto ao aspecto religioso, Romário Martins afirma que além de Tupã, os nossos índios tinham outras divindades, hierarquicamente inferiores, como Guaraci (o Sol), “sob cujos auspícios se desenvolvia a vida animal”, Jaci (a Lua) “que presidia a vida vegetal” e Rudá (o deus do amor). Afirma também que tais índios não tinham a concepção de satanás, mas acreditavam em “semideuses pagãos” protetores dos animais do campo (Anhangá), da floresta (Curupira) e dos animais da mata (Caapora) 26.  

            Faris Michaele conclui suas observações sobre os tupi-guarani na obra citada abordando a influência das suas “qualidades de caráter” sobre o brasileiro, de acordo com diversos escritores que trataram do tema: “o fatalismo, a improvisação, a imprevidência, o desprendimento, a indolência, a fraternidade, o misticismo messiânico etc” (p.63). No que se refere a esta última qualidade, o autor anteriormente destacara sua influência sobre os messianismos caboclos, como os do Contestado e Canudos (p.62).

            As considerações anteriores procuraram fazer uma caracterização geral dos índios guarani, ou de forma mais abrangente tupi-guarani, na ampla região no continernte sulamericano ocupada por “uma miríade de povos tribais, falando línguas do mesmo tronco, dialetos de uma mesma língua27. Supõe-se que as características apontadas seriam aplicáveis também aos índios dessa família presentes no território hoje paranaense.

            A presença desses índios aqui é confirmada não só pelos relatos dos viajantes mas também pela designação tupi de acidentes geográficos, nomes de lugares, de animais, plantas etc. Faris Michaele, na obra citada (p. 23), afirma que o Paraná é “chão preponderantemente guarani”.  Por outro lado, Romário Martins, em sua “História do Paraná”, arrola 41 tribos tupi presentes em nosso território. Além dos guarani -- os “tupi do sul”, como os chama (p. 112) -- que habitavam segundo ele o sertão compreendido entre os rios Paranapanema, Paraná, Tibagi e Iguaçu, cita os carijó (ou cario), presentes no litoral (na realidade, outro nome para os guarani do litoral), indígenas que, miscigenados com os portugueses, contribuiriam para a formação da população paranaense mais tradicional. Diz Martins, que fugindo do litoral, após a região ser assolada pelas bandeiras preadoras de índios, eles surgirão no vale do Paranapanema e no baixo Iguaçu. Algumas outras tribos tupi citadas por esse mesmo autor: a dos tingui, habitantes da região de Curitiba; dos caiuá, do vale do Paranapanema; dos campeiro, à esquerda do rio Tibagi; dos teminimó, da região entre os rios Piquiri e Tibagi (que habitavam as imediações de Villa Rica segundo A.E.Taunay, citado por Martins); dos chiripá, da foz do rio Piquiri ao Iguaçu etc (op cit, p.29-38).

            A outra família ou etnia indígena aqui também presente, na época do Paraná espanhol, era a dos jê ou tapuia (cf Michaele, op cit, p. 25-27). Os antigos chamavam “tapuia” todos os índios que não pertenciam à família lingüística tupi-guarani. Abrange, em nosso caso, basicamente os caingangue, que após o desaparecimento das vilas espanholas e reduções jesuíticas do Guairá, ocuparam o território abandonado pelos guarani, sobre quem principalmente os padres haviam exercido o seu trabalho missionário. Mas os índios das reduções não eram exclusivamente guarani, embora fossem certamente maioria. Como veremos, elas também envolveram índios gualacho, guaianá e coroado.
           
                                                            ***

            Dois anos após o descobrimento da América celebrou-se o Tratado de Tordesilhas, aprovado pelo papa Alexandre VI. De acordo com ele, as terras recém-descobertas (ou por descobrir, nas quais se incluía o território brasileiro) passavam a pertencer ou à Espanha ou a Portugal.

            O meridiano definido pelo Tratado situava-se, de polo a polo, a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Assim, a maior parte do território brasileiro pertenceria à Espanha, a quem cabiam as terras a oeste desse meridiano, o qual, no entendimento de Portugal, passava por Belém do Pará e Laguna, em Santa Catarina, cabendo a esse país as terras a leste daquela linha imaginária.  Todavia o ponto meridional extremo era incerto: para os espanhóis ele não se localizava em Laguna e sim em Iguape, no litoral sul de São Paulo. Neste caso, todo o território do atual Estado do Paraná seria espanhol. Pelo critério anterior, só não seria espanhol o nosso litoral,  até a Serra do Mar 28

            Ao longo do tempo, em consequência da ação dos bandeirantes (que aqui provocaram o desaparecimento das reduções jesuíticas e vilas espanholas) e ao “uti possidetis”, ignorou-se o meridiano de Tordesilhas e se conquistou para Portugal o território hoje brasileiro (e paranaense). Essa situação de fato foi reconhecida juridicamente pelos tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777).



2 Lacouture, Jean-  “Os jesuítas”- v.1- Os conquistadores. Porto Alegre: L&PM, 1994- p.432
3 Vasconsellos, Victor Natalício--  “Lecciones de Historia Paraguaya”- 6a ed.- Asunción: Ed. do Autor, 1970- p.11. Cf mapas nas pp.12 e 19. Ver também mapa em “Ser Índio Hoje” de Katsue Hamada e Zenun e Valeria Maria Alves Adissi. São Paulo: Ed. Loyola, 1998- p.82
4 Vasconsellos, Victor Natalicio-- “Lecciones ...”, op cit, p. 13-14
5 Id., ibid, p. 14; cario=carijó (cf Martins, Romário- “História do Paraná- 3a. ed- Curitiba: Editora Guaíra, s/d.- p.36; o mesmo autor, na p. 37, afirma que os chiripá  habitavam a “zona que se estende da margem direita do rio Paraná à foz do Piquiri e ao Iguaçu, na altura correspondente à foz do Santo Antonio”)  
6 Cf. entrevista de Rafael Eladio Velazquez in “República Guarani”, de Sílvio Back- 2a ed.- Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982- p. 80 e 85.
7 Lugon, Clóvis--  “A República 'Comunista' Cristã dos Guaranis: 1610-1768”- 3a.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977-p. 24
8 Citada por Maria Inês Ladeira- “Terra em movimento: a luta do povo guarani” in “História Viva” ano IV, nº 40, p.80-85
9  Ribeiro, Berta- “O Índio na História do Brasil”- 9a ed- S.Paulo: Global Ed., 2000,  p.58-59
10  Lugon, Clóvis- “A República...”, op cit, p. 213, nota
11 Id., ibid., p. 25
12 Enciclopédia  Abril, 2a. ed- S.Paulo: Ed. Abril, 1976- v.12 (verbete “Tupi-Guarani”)- p. 204
13  Lugon, Clóvis- “A República...”, op cit, p.213
14 Enciclopédia Mirador Internacional. São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda, 1987-  v.11, p.5531 (verbete “Guarani”, a cargo de Moacir Werneck de Castro e Antônio Houaiss)
15 Ribeiro, Berta- “O Índio ..., op cit, p. 30. Quanto ao Brasil, Darcy Ribeiro afirma que tribos do tronco tupi, na época do descobrimento, “Somavam, talvez, 1 milhão de índios, divididos em dezenas de grupos tribais, cada um deles compreendendo um conglomerado de várias aldeias de trezentos a 2 mil habitantes” (Ribeiro, Darcy- “O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”. S.Paulo: Companhia das Letras (Companhia de Bolso), 2006- p. 28)
16 Id., ibid., p. 31
17 Lacouture, Jean-  “Os Jesuítas”, op cit, p. 453
18 Ribeiro, Darcy- “O Povo...”, op cit, p. 28
19 Lacouture, Jean-  “Os Jesuítas”, op cit, p. 433
20 Cf. citação do Pe. Fernão Cardim in Ribeiro, Berta-- “O Índio ..., op cit, p. 45. Mais adiante, nesta monografia, transcrevo a definição que o padre Montoya dá de “redução”. Ele afirma aí que nas aldeias os índios viviam em três, quatro ou seis casas apenas. Se cem ou duzentas pessoas viviam em cada casa, a população das aldeias podia variar de trezentas a mil e duzentas pessoas. Há pouco vimos que Pierre Clastres considera 600 (ou mais) o número médio de habitantes por aldeia.
21  Lugon, Clóvis- “A República..”, op cit, p. 201
22 Benitez, Luiz G.- “Manual de Historia Paraguaya”-Asunción: Imprenta Comuneros S.R.L., s/d.- p.13
23 Ladeira, Maria Inês- “Terra em movimento: a luta do povo guarani” in “História Viva” ano IV, nº 40, p.80-85
24 Lacouture, Jean-  “Os jesuítas”, op cit, p. 433-434
25 Michaele, Faris Antonio S.- “Presença do Índio no Paraná”, p.11-69, in “História do Paraná”- 2a ed, Curitiba: Grafipar, 1969
26  Martins, Romário-  “História ...”, op cit, p. 108
27 Ribeiro, Darcy- “O Povo...”, op cit, p. 26
28  Martins, Romário-  “História...”, op cit, p.54

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