terça-feira, 9 de outubro de 2012


O "PARANÁ ESPANHOL"

por Domingos van Erven


A monografia abaixo -- -- que obteve o 1º prêmio em concurso promovido pela Secretaria de Estado da Cultura do Paraná em 2009 -- busca caracterizar, da forma permitida pelas informações disponíveis em fontes secundárias, a realidade sócio-econômica, política e cultural do chamado “Paraná espanhol” nos séculos XVI e XVII.  
No território do atual estado brasileiro do Paraná-- então conhecido como província do Guairá e integrante da área que coube à Espanha pelo tratado de Tordesilhas-- estabeleceram-se duas vilas espanholas em meados do século XVI e pelo menos treze reduções jesuíticas a partir de 1610. Essas reduções existiram até o começo dos anos 1630, quando foram destruídas ou se desfizeram em consequência dos ataques dos bandeirantes, que assim contribuíram para conquistar o território em questão para Portugal. 
Esta monografia procura retratar portanto a vida, paixão e morte das referidas comunidades.

OBS: um volume, contendo o texto deste site, já pode ser adquirido no link  http://www.agbook.com.br/book/139172--O_PARANA_ESPANHOL   

As postagens neste blog seguirão a ordem do seguinte  SUMÁRIO:                    

1. INTRODUÇÃO

2. OS PRIMITIVOS HABITANTES DA REGIÃO


3. O PARANÁ ESPANHOL 

Como os espanhóis iniciaram a ocupação da região

A proeza de Aleixo Garcia

O primeiro “adelantado” do Rio da Prata ou Paraguai

O segundo “adelantado”, D. Alvar Nuñes Cabeza de Vaca

A província do Guairá

Governo de Irala: fundação de Ontiveros

Fundação de Ciudad Real
Fundação de Villa Rica
A chegada dos jesuítas
As primeiras reduções
As reduções: caracterização de toda a experiência

A experiência do Guairá 

O ataque dos bandeirantes

O Guairá depois dos ataques dos bandeirantes

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

5. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA


Debret- soldados conduzindo índios aprisionados na Comarca de Curitiba



1. INTRODUÇÃO


            O interesse principal desta monografia é a compreensão da realidade sócio-econômica, política e cultural da província do Guairá, região pertencente ao amplo território paraguaio do século XVI, que por sua vez subordinava-se ao Vice-Reino do Peru, nos domínios coloniais da América espanhola. Na literatura disponível sobre o tema, a expressão “província do Guairá” pode ser usada num sentido amplo-- como ocorreu por ocasião da decisão das autoridades espanholas de 1617 que dividiram esse amplo Paraguai em dois governos-- ou no sentido mais restrito, aquí adotado, cujo território quase coincide com o do atual Estado do Paraná, como se verá adiante. Desse modo, compreender a realidade do Guairá nos séculos XVI e XVII é compreender a realidade de um “Paraná espanhol” 1 cuja caracterização é objeto deste estudo.

            Ele se apoia em fontes secundárias. Seu mérito, se houver, estará no levantamento, articulação e interpretação das informações disponíveis nessas fontes, de modo a se obter um quadro aproximado do que teria sido a realidade do Estado naquele período, de acordo com as fontes mencionadas. Em suma, busca-se compreender melhor os dois primeiros séculos da História do Paraná, no que se refere à ocupação espanhola de seu território.   
   
            A monografia está assim estruturada:

1. Inicia por uma rápida caracterização dos primitivos habitantes da região, anteriores à chegada dos europeus, boa parte dos quais eram vinculados à grande família tupi-guarani. O foco maior da atenção recai sobre os índios guarani, habitantes do Guairá, procurando-se caracterizar sua distribuição geográfica, o seu tamanho populacional, os  usos e costumes etc.

2. Em seguida, o trabalho busca mostrar como os espanhóis iniciaram a ocupação da região, subindo o rio Paraná a partir da sua foz, no Prata. Trata das suas explorações, orientadas pelo interesse maior: a busca de metais preciosos, inexistentes na região. Trata também da fundação de Buenos Aires e Assunção. Esta então era mais importante do que aquela, sede do governo de um Paraguai vinte vezes maior que o atual. Mostra que nessa época os portugueses estavam iniciando a ocupação do litoral sul brasileiro. Penetram no litoral paranaense como uma projeção da ocupação do litoral paulista (S. Vicente, a primeira vila fundada no Brasil, é de 1532).  Aborda as jornadas de Aleixo Garcia e Cabeza de Vaca, que percorreram o território paranaense de leste a oeste. Cabeza de Vaca chama o território de “Província de Vera”, mas o nome que se impõe pelo costume é  “Província do Guairá”, integrante  da  grande  região  do Paraguai e Rio da Prata, subordinada ao Vice-Reino do Peru (em 1617  essa   região   é    dividida    em    dois    governos:   um  com  sede  em Assunção-- “Gobernación del Guairá o Paraguai”, e outro com sede em Buenos Aires--Gobernación del Río de la Plata”). Afirma que tanto portugueses como espanhóis estavam interessados em assenhorear-se dos índios, a maior riqueza da terra, defendidos pelos jesuítas em suas reduções. Mostra que os espanhóis adotavam o sistema das encomiendas o qual na prática significava a escravização dos índios. Os portugueses, por outro lado, os escravizavam pura e simplesmente, sem estarem sujeitos a certas obrigações, como os espanhóis, nas encomiendas.  Trata da fundação, na província do Guairá, das vilas espanholas de Ciudad Real (que absorveu Ontiveros) e Villa Rica e aponta as razões para a sua fundação. Trata também da sua existência na segunda metade do século XVI, em que poucos espanhóis eram senhores de muitos índios, os quais trabalhavam na principal atividade econômica da região: a coleta da erva-mate. Por isso a posse dos índios era tão cobiçada pelos espanhóis. Mas eles também eram objeto da cobiça dos portugueses de São Paulo, que os capturavam no Guairá e os levavam para vender como escravos nos mercados do sudeste. Mostra que no final da década de 1580 chegam os jesuítas, para tentar um novo sistema de civilizar os índios, tendo em vista o fracasso do sistema das encomiendas.

3. Na sequência, o trabalho aborda o papel desempenhado pelos jesuítas no Guairá, iniciando pela atividade pioneira dos padres Ortega e Fields, principalmente o primeiro. Afirma que em 1610 é fundada a primeira redução jesuítica, a de Nossa Senhora de Loreto, logo seguida pela fundação de Santo Inácio Menor, ambas localizadas na margem esquerda do Paranapanema, em território hoje paranaense. Procura caracterizar no que consistiu o projeto jesuítico, com base no exame da sua experiência histórica, de mais de 150 anos, contemplando os aspectos econômico, social, político e cultural. Avalia a experiência do Guairá, que se refere apenas aos primeiros vinte anos desse projeto, de 1610 a 1631. Examina as reduções aí implantadas, procurando caracterizá-las individualmente, na medida da disponibilidade das informações. Mostra que enquanto se desenvolviam aqui, outras reduções iam se implantando entre os rios Paraná e Uruguai. Trata de como as reduções sofreram o ataque dos bandeirantes, que implicou no seu desaparecimento --e também das vilas espanholas -- do território paranaense e sua reinstalação em outras regiões do continente. Aborda as razões para a ocorrência de tais fatos. Narra a grande migração de 1631, liderada pelos padres jesuítas, rumo ao sul, para os territórios atuais da Argentina e Paraguai.

4. Na última etapa, o trabalho refere-se rapidamente à situação do Guairá após o ataque dos bandeirantes e ao desaparecimento das reduções jesuíticas e vilas espanholas. Mostra que a região, depois desses fatos, cai no esquecimento por mais de um século. E apresenta, sucintamente, o que estava acontecendo a leste do território hoje paranaense, na segunda metade do século XVII.

5. Nas “Considerações Finais” a monografia procura avaliar o significado dessa experiência histórica para o Estado do Paraná, e faz uma série de recomendações ao poder público.  



1 Expressão usada por Balhana, Altiva Pilatti et al. em sua “História do Paraná”, 2a ed, v.1. Curitiba: Grafipar, 1969. 

 2. OS PRIMITIVOS HABITANTES DA REGIÃO


Debret- carga de cavalaria Guaicuru

            A História da América pré-colombiana nos informa que toda a região era habitada  antes da chegada dos europeus, durante milhares de anos, por muitos povos, de diferentes níveis de desenvolvimento, desde os mais adiantados (inca, maia, asteca, “possuidores de uma civilização urbana e inventores de uma arte suntuosa 2) até os povos tupi-guarani, jê ou tapuia e outros, que se encontravam num estágio inferior de desenvolvimento. Aí se  incluíam também, certamente, aquelas “hordas nômades dos caçadores neolíticos”, como os guaicuru ou os charrua, referidas por Lacouture, que os considera porém “extremamente diferentes” dos guarani, seus vizinhos.  

             Vasconsellos menciona os grupos ou tribos que mais se destacararm na história do continente sul americano: os chibcha (Colômbia), inca (Peru), araucano (Chile), charrua (Uruguai), guarani e tupi (Paraguai e Brasil) e os pampeano 3.  Este último grupo, de habitantes do rio da Prata, abrangia os calchaqui ou diaguita (noroeste da Argentina, mais desenvolvidos, influenciados pelos inca); os paiaguá, ñaperu, guaicuru, guatata, mbocobi e agace (margem direita do rio Paraguai, na região do Chaco); os kumegua, abipone, timbu e querandí, estes últimos “sanguinarios y feroces indios que hicieron despoblar Buenos Aires poco tiempo después de su fundación” (região do rio Bermejo até Buenos Aires) e por fim os minuane, mbegua, chaná, bohane, yaro e charrua (região de Entre Rios e Uruguai) 4.

            Com relação aos guarani, além dos  tupi, Vasconsellos cita outras nações índígenas “vinculadas por las tradiciones, la raza y la lengua comunes”: os cario (imediações de Assunção), itatim (norte do Paraguai e sul de Mato Grosso do Sul), omagua (mais ao norte, nas margens do Amazonas), chiriguano (Bolívia), chiripa (região do Guairá), guazurango e guarayo (proximidade da fronteira do Paraguai com a Bolívia) 5

            Os paiaguá e os guaicuru (índios cavaleiros) tinham em comum o fato de serem “inimigos seculares” dos guarani. Eles “jamais foram submetidos” aos espanhóis (ou às reduções), a quem hostilizavam, atacando-os permanentemente 6.
                                                                                                                                              
            Os tupi-guarani habitavam extensas áreas do continente sul americano, abrangendo não só partes dos atuais territórios do Brasil e Paraguai, mas também do Uruguai, Argentina e Bolívia. Pertencem a uma mesma família linguística do tronco tupi, de várias línguas e dialetos, em que se destacam dois deles: o tupi e o guarani, muito semelhantes entre si. Foram povos tupi os primeiros indígenas contatados pelos portugueses quando desembarcaram no litoral brasileiro. Posteriormente, eles integraram as expedições sob o comando dos paulistas que objetivavam a captura de índios guarani no Guairá. Certamente por isso Lugon os considera mais belicosos que esses últimos, de natureza dócil e sociável 7.

            Hélène Clastres define assim a ampla área geográfica ocupada por tais indígenas:

Os Tupi ocupavam a parte média e inferior da bacia do Amazonas e dos principais afluentes da margem direita. Dominavam uma grande extensão do litoral atlântico, da embocadura do Amazonas até Cananéia. Os Guarani ocupavam a porção do litoral compreendida entre Cananéia e o Rio Grande do Sul; a partir daí, estendiam-se para o interior até os rios Paraná, Uruguai e Paraguai. As  aldeias indígenas distribuíam-se ao longo de toda a margem oriental do Paraguai e pelas duas margens do Paraná.  Seu território era limitado ao norte pelo rio Tietê, a oeste pelo rio Paraguai 8.

            Detalhando mais a área ocupada pelos Guarani, assim se expressou Ribeiro:

Os Guarani ocupavam uma extensa área no Sul banhada pelos três grandes rios,  Uruguai, Paraná e Paraguai, que convergem para o rio da Prata. Corresponde aos atuais  territórios do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, no Brasil, às  províncias de Corrientes e Entre-Rios,  na Argentina, enormes porções do Paraguai, e os campos chamados Vacaria, do  Uruguai. 9

            Quanto à língua falada pelos tupi e guarani, o padre Anchieta, da província jesuítica do Brasil, já em 1595 publicava uma gramática tupi, língua que era bem mais falada que o português no tempo do Brasil Colônia, até o começo do século XVIII, na proporção de três para um, segundo Teodoro Sampaio, citado por Romário Martins (“História...”, op cit, p. 111). De acordo com Lugon, Anchieta “teve a idéia de eliminar por um trabalho metódico as diferenças entre os dialetos”, criando uma “língua geral” amplamente difundida 10.  Informa  o mesmo autor, no tocante ao guarani, que já antes da chegada dos jesuítas ao Paraguai os franciscanos Luis Bolaños e S. Francisco Solano já haviam composto um catecismo, uma gramática e um dicionário nessa língua 11.  Mais tarde, em 1640 o Pe. Antonio Ruiz de Montoya  (1585–1652 ), o grande incentivador das reduções jesuíticas no Guairá, publicou a sua gramática guarani, antecedida, no ano anterior, pela publicação de outro trabalho seu, um vocabulário de tal língua 12. Para Montoya, que “conhecia a fundo a língua guarani” nas palavras de Lugon, esta poderia “suportar a comparação com as mais ricas línguas européias, tanto pela harmonia das palavras como pela exatidão das expressões. Cada termo é uma definição precisa, rigorosa 13 Trata-se de “um idioma rico em expressões de sentido metafórico” que, além disso, conta “com muitos traços onomatopaicos” 14

            Lugon refere-se à admiração dos europeus ao constatar que milhares de povoados guarani, espalhados em tão amplo território, apresentam “em seus traços fisionômicos, em sua cor, em seus instintos, os vestígios de uma origem comum que se mantém ignorada e, coisa inexplicável, falam todos a mesma língua”(p.23). Admiram-se que esses povoados, vivendo “num isolamento social completo, tenham podido conservar a mesma língua num território mais vasto que a Europa”(p.25).

            Quantos eram os guarani que viviam na América quando os europeus aqui chegaram? Estima-se que seu número estaria entre 1,4 e 1,5 milhão. A esse respeito Ribeiro afirma o seguinte: 

Num trabalho publicado em 1972, Pierre Clastres calcula a população Guarani do Brasil,  Paraguai, Uruguai e Argentina, de antes da conquista, tomando por base dados dos cronistas do século XVI sobre a extensão do território tribal (350.000 km2), a distância entre as aldeias (9 a 12 km) e o número médio de habitantes por aldeia (600, tomado por baixo). Clastres chega à conclusão de que, antes da chegada dos europeus, havia cerca de 1.404.000 Guarani no retângulo compreendido entre o    alto rio Paraguai e a costa atlântica, com uma média de 4 habitantes por km² 15.

            Para Ladeira, conforme artigo seu já citado, a população guarani no início do século XVI era de, no mínimo, 1,5 milhão pessoas, enquanto hoje, surpreendentemente, é de apenas 35 mil no Brasil, cerca de 4.500 na Argentina (Misiones) e mais de 45 mil no Paraguai (os guarani do Brasil assim se compõem:  8 mil nhandeva, 7 mil mbyá e 20 mil kaiová).

            A simples comparação do número original dos guarani (mesmo sem considerar o aumento que naturalmente ocorreria pelo crescimento vegetativo, na ausência do conquistador) com o número diminuto dos índios guarani remanescentes hoje em dia, distribuídos por aqueles três países, mostra bem a intensidade  do ritmo  trágico de  destruição de um povo, promovida pelos europeus, ao longo da história. 

            Já no início da ocupação da América espanhola, a cobiça dos conquistadores pelos metais preciosos recém-descobertos fez com que -- para justificar a sua conduta abominável -- negassem a condição humana dos nativos americanos, o que obrigou o papa Paulo III a lançar uma bula em 1537 declarando tal condição 16. E a selvageria daqueles espanhóis (não dos índios) provocou a reação indignada do frade dominicano Bartolomeu de Las Casas (1474-1566) contra o genocídio que testemunhava...

                                                           ***

            Os guarani eram um povo seminômade, que só se fixava por alguns anos numa dada região. Segundo Lacouture, os guarani (“os etnólogos preferem chamá-los tupi-guaranis”) “mudavam de território a cada três anos, de queimada em queimada”17. Além de serem “grandes caçadores”, “praticavam uma agricultura simples em áreas previamente preparadas por meio de queimadas; como não dispunham de arados de madeira, mudavam sempre de local, dependendo da colheita e da estação” (p.432). Mais tarde, após a chegada dos jesuítas, os padres ganhariam muito prestígio com os índios doando-lhes utensílios de ferro valorizados, “sobretudo a machadinha cuja introdução transformou a produtividade agrícola”. Também lhes doavam arpões para a  pesca, anzóis e relhas de arado (p.432).

            Nos locais em que se estabeleciam os guarani asseguravam a própria subsistência recorrendo à caça, à pesca e desenvolvendo alguma agricultura (milho, mandioca, batata doce, algodão, tabaco). Quanto à mandioca, uma planta venenosa, os índios realizaram “uma proeza extraordinária”, como assinala Darcy Ribeiro, ao “extrair-lhe o ácido cianídrico, tornando-a comestível” 18. Fabricavam vinho de milho e de mel. Quanto à sua atividade artesanal, afirma Martin de Moussy, citado por Lugon:  “A fabricação de armas de guerra, de canoas para os transportarem nos rios, a confecção de alguns ornamentos em plumas, a cerâmica rudimentar, eram as únicas artes dos guaranis” (p.134).  Mais adiante, referindo-se à cerâmica, Lugon menciona “os vasos gigantes em que os guaranis inumavam seus guerreiros gloriosos” (p.137).

            A sociedade guarani era uma sociedade sem Estado. Como diz Lacouture:  “O  dado básico da sociedade guarani, conforme a descreveu, entre outros Pierre Clastres em L'Esprit des lois sauvages, era a ausência de qualquer autoridade estatal, ou antes de qualquer poder restritivo   institucionalizado 19.  O mesmo  autor   relativiza  a  autoridade  dos  caciques,  já contrabalançada pela dos pajés, pois ambos “tinham mais contas a prestar à coletividade do que meios de coerção em relação a ela”. 

            Não havia grandes diferenças sociais entre os membros de tal sociedade, destacando-se porém as figuras do cacique (chefe da família, líder político) e do feiticeiro-curandeiro. Constituíram aldeias que congregavam longas habitações (ocas), sem divisão interna, que abrigavam  cem  ou duzentas  pessoas,  onde  tudo  era  feito  à   vista  de  todos 20 Sobre isso, e para justificar a atuação dos padres contra a poligamia, em nome da valorização da mulher e da estabilidade da vida familiar, Lugon afirma: “(..) antes do estabelecimento das reduções, os guaranis viviam em galpões coletivos de uma só peça, sem separação, em grupos de famílias contando até duzentas pessoas. A promiscuidade era completa. Além disso, os caciques praticavam a poligamia e possuíam até vinte ou trinta mulheres, que podiam, aliás, abandonar a seu bel-prazer. Tinham também o direito de exigir as filhas de seus colegas” 21.

            Segundo Lugon os autores antigos são geralmente “pouco lisongeiros para os guaranis”, apresentando-os “sob as cores mais repulsivas, a fim de justificar melhor os crimes dos conquistadores” (p.24). Consideram-nos, por exemplo, indolentes, antropófagos, amantes da pilhagem e da vingança que os tornavam “mais furiosos que valentes” (o nome “guarani” significa “guerreiro”). Mas tudo isso para Lugon “não passa de caricatura. Pelo fato de que duas ou três tribos imolavam ritualmente, após um combate, um único prisioneiro, não se tem o direito de descrever a raça guarani, em geral, como antropófaga”(p.34). Cita Charlevoix (autor de uma “Histoire du Paraguay”) que, como outros autores,  destaca “o pendor socialmente dócil e sociável dos guaranis, que convivem com os europeus mais espontaneamente do que os outros povos da América” (p.24). Aliás, acrescento eu, a viagem de Cabeza de Vaca e outros europeus pelas terras paranaenses não teria sido possível sem o auxílio desses indígenas.

            Afirma ainda o abade suíço: “Certas  tribos  admitiam  a  poligamia.  Na  região  de   Guairá, onde os jesuítas iriam fundar as primeiras reduções, somente os caciques possuíam várias mulheres.

            Os guaranis acreditavam num só Deus, a quem não rendiam qualquer culto exterior, nem ofereciam sacrifícios. Não existiam sacerdotes” (p.26).

            Mas, complementa esse autor, havia médicos-feiticeiros que supostamente extraíam a causa da enfermidade no corpo usando um artifício (“fingiam extrair qualquer coisa que tinham antecipadamente metido na boca”, conforme Charlevoix).  Ademais,   interpretavam     o  canto dos pássaros e prediziam  o  futuro, além de lançar pragas sobre os adversários.
  
            Na área da botânica, os guarani conheciam as propriedades medicinais e alimentares das plantas. A medicina guarani baseava-se em plantas medicinais e em produtos de origem animal 22.
            Uma característica marcante dos guarani é a sua migração constante, interpretada pelos estudiosos como a busca da mítica “terra sem mal” (yvy marãey) 23.      

            Abordando o aspecto religioso, Lacouture afirma que certas tribos tupi-guarani eram animistas (buscavam defender-se contra os demônios “donos da floresta e das tempestades”; as divindades eram impiedosas, sendo a mais temível delas Tupã, “senhor do trovão”). Mas outras tribos “acreditavam num Ser superior, senhor do 'País sem o mal', uma espécie de paraíso em que os justos, conduzidos por um 'herói civilizador', seriam um dia recebidos. Elas reverenciavam um certo Pai-Sumé em que os jesuítas fingiram reencontrar um São Tomé que teria não apenas evangelizado as Índias orientais como também as ocidentais” 24.     Lacouture afirma ainda, apoiando-se em Roger Lacombe, que havia um certo messianismo nos tupi-guarani, característica dos povos nômades. Acreditavam numa terra prometida, origem do mito do Eldorado, “assim chamado pelos conquistadores porque o ouro ali abundaria-- ouro que aparentemente era negligenciado pelos 'selvagens', assim como por seus missionáros. A ausência comum de cobiça criou entre eles o vínculo talvez mais sólido”. (p. 434)

            Para Lacouture, essas crenças e mitologias dos guarani (Pai-Sumé, país “sem mal”, “herói civilizador”, vago messianismo) podiam predispô-los a receber a pregação dos jesuítas do Deus único e de um além (p. 455).  Ainda no campo da religiosidade dos guarani, o mesmo autor constata a tendência  dos  índios a não distinguir o natural do sobrenatural. E também de que “eram  pouco acessíveis à ideia do pecado” (p. 455).

            Faris Michaele, em sua contribuição para o volume 3 da História do Paraná (ed. Grafipar)25 aborda aspectos da cultura material e espiritual dos nossos indígenas.

            No âmbito da “cultura material” trata das habitações, vestuário e ornamentações, vida econômica, arte culinária, atividades industriais etc. Desses assuntos, destaco dois, não abordados nas páginas anteriores desta monografia.

            Com relação ao vestuário e ornamentação, escreve Michaele:

Os tupis-guaranis, por via de regra, como quase todos os povos em estado natural, possuiam pouca ou    nenhuma roupa. (...) As tribos da costa, quando muito, ensaiavam um princípio de tanga. Mas os nossos guaranis, pelo testemunho já dos cronistas do século XVI, lançavam mão de um manto de peles para se  abrigarem do frio intenso desta região. As mulheres usavam uma faixa para carregar as crianças. Era a tipoya, que passou ao português (...). Homens e mulheres untavam o corpo, pintavam-no e nele desenhavam ondas, espirais e faixas. Aliás, o desenho era o seu forte como também o era, em certas tribos, a ornamentação feita com penas. A pintura tinha várias finalidades: libertar dos mosquitos, defender do sol tropical e evitar a aproximação dos maus espíritos (...) Algumas tribos praticavam,  também, a tatuagem, que parece quase inexistente entre os nossos guaranis (p. 30-31).

            Quanto à culinária, diz Michaele que os tupis-guaranis faziam da mandioca farinha, bebidas fermentadas etc; do milho, a pamonha, pipoca, canjica, farinha, bebidas fermentadas; do peixe, a paçoca (carne esmagada no pilão e misturada com farinha) e a moqueca (peixe assado envolto em folhas de árvores) (p. 35-36).

            Relativamente à “cultura espiritual” dos tupi-guarani, Michaele demonstra, frequentemente indicando a sua expressão linguística, que eles possuiam conhecimentos astronômicos, anatômicos, zoológicos e botânicos, conhecimento do poder curativo das plantas. Mostra também que, além de religião, possuiam literatura e direito.

            Segundo essse autor, pelos astros os tupi-guarani “orientavam as suas marchas e expedições guerreiras; através deles, controlavam as suas relativamente adiantadas lavouras; e com eles, regulavam toda uma cronologia, sem falar nos mitos e crendices que, ainda, os mesmos lhes inspiravam” (p. 39-40)

            Quanto ao corpo humano, chegaram também a uma “bem desenvolvida terminologia anatômica” (p.42), da qual Michaele dá uma série de exemplos.

            “Sabiam tudo a respeito dos animais e vegetais: formas, modos de vida, qualidades ou propriedades etc (p.43) (...) as raízes dos nomes indígenas foram sendo incorporadas à terminologia científica internacional, de modo que, hoje, a família tupi-guarani figura em segundo lugar nas designações botânicas e quase tal, nas zoológicas” (p.43).

            Exibiram “aos viajantes, cronistas e missionários da fase colonial, já, um profundo conhecimento das propriedades terapêuticas da flora brasileira” (p.45-46). O índio no Brasil “se familiarizou com os segredos curativos de mais de setenta plantas e frutos”, arrolados por Michaele na p. 46. Segundo este, “Até os bandeirantes apelavam para a botica da selva....” (p.47)

            Sua literatura é enorme, abrangendo “quatro séculos de composições em prosa e verso” (p.48). O autor, a partir da p. 50, dá mostras de tal literatura, transcrevendo contos, trovas e provérbios, a princípio integrantes da sua literatura oral.

            Quanto ao direito consuetudinário indígena, segundo Michaele ele abrange a família (com terminologia mais complexa que a das línguas européias para o parentesco- p.59), a propriedade (reconhecendo seu caráter individual com relação a certos bens como armas, redes, troféus etc, embora “os índios vivessem num regime comunitário”- p.59), os tratados intertribais, a sua organização político-social, as sanções penais etc

            Referindo-se aos elementos religiosos dos nosos índios, Michaele destaca “o culto natural dos elementos cósmicos: sol, lua etc.”, os heróis civilizadores (um deles é Sumé, confundido com o apóstolo S. Tomé), os gênios bons e maus “ligados aos elementos naturais” (exs: Anhangá, Boitatá, Curupira, Caapora, Saci Pererê), o pajé e o caraíba (este, “um homem santo, que ia de tribo em tribo, prometendo fazer chover, crescer as plantas, eliminar as moléstias, os inimigos e outras coisas mais”), além da crença na “Terra onde não se morre e que devia ser procurada pela tribo”, que provocou as constantes migrações tupis-guaranis (p.61).

            A propósito, quanto ao aspecto religioso, Romário Martins afirma que além de Tupã, os nossos índios tinham outras divindades, hierarquicamente inferiores, como Guaraci (o Sol), “sob cujos auspícios se desenvolvia a vida animal”, Jaci (a Lua) “que presidia a vida vegetal” e Rudá (o deus do amor). Afirma também que tais índios não tinham a concepção de satanás, mas acreditavam em “semideuses pagãos” protetores dos animais do campo (Anhangá), da floresta (Curupira) e dos animais da mata (Caapora) 26.  

            Faris Michaele conclui suas observações sobre os tupi-guarani na obra citada abordando a influência das suas “qualidades de caráter” sobre o brasileiro, de acordo com diversos escritores que trataram do tema: “o fatalismo, a improvisação, a imprevidência, o desprendimento, a indolência, a fraternidade, o misticismo messiânico etc” (p.63). No que se refere a esta última qualidade, o autor anteriormente destacara sua influência sobre os messianismos caboclos, como os do Contestado e Canudos (p.62).

            As considerações anteriores procuraram fazer uma caracterização geral dos índios guarani, ou de forma mais abrangente tupi-guarani, na ampla região no continernte sulamericano ocupada por “uma miríade de povos tribais, falando línguas do mesmo tronco, dialetos de uma mesma língua27. Supõe-se que as características apontadas seriam aplicáveis também aos índios dessa família presentes no território hoje paranaense.

            A presença desses índios aqui é confirmada não só pelos relatos dos viajantes mas também pela designação tupi de acidentes geográficos, nomes de lugares, de animais, plantas etc. Faris Michaele, na obra citada (p. 23), afirma que o Paraná é “chão preponderantemente guarani”.  Por outro lado, Romário Martins, em sua “História do Paraná”, arrola 41 tribos tupi presentes em nosso território. Além dos guarani -- os “tupi do sul”, como os chama (p. 112) -- que habitavam segundo ele o sertão compreendido entre os rios Paranapanema, Paraná, Tibagi e Iguaçu, cita os carijó (ou cario), presentes no litoral (na realidade, outro nome para os guarani do litoral), indígenas que, miscigenados com os portugueses, contribuiriam para a formação da população paranaense mais tradicional. Diz Martins, que fugindo do litoral, após a região ser assolada pelas bandeiras preadoras de índios, eles surgirão no vale do Paranapanema e no baixo Iguaçu. Algumas outras tribos tupi citadas por esse mesmo autor: a dos tingui, habitantes da região de Curitiba; dos caiuá, do vale do Paranapanema; dos campeiro, à esquerda do rio Tibagi; dos teminimó, da região entre os rios Piquiri e Tibagi (que habitavam as imediações de Villa Rica segundo A.E.Taunay, citado por Martins); dos chiripá, da foz do rio Piquiri ao Iguaçu etc (op cit, p.29-38).

            A outra família ou etnia indígena aqui também presente, na época do Paraná espanhol, era a dos jê ou tapuia (cf Michaele, op cit, p. 25-27). Os antigos chamavam “tapuia” todos os índios que não pertenciam à família lingüística tupi-guarani. Abrange, em nosso caso, basicamente os caingangue, que após o desaparecimento das vilas espanholas e reduções jesuíticas do Guairá, ocuparam o território abandonado pelos guarani, sobre quem principalmente os padres haviam exercido o seu trabalho missionário. Mas os índios das reduções não eram exclusivamente guarani, embora fossem certamente maioria. Como veremos, elas também envolveram índios gualacho, guaianá e coroado.
           
                                                            ***

            Dois anos após o descobrimento da América celebrou-se o Tratado de Tordesilhas, aprovado pelo papa Alexandre VI. De acordo com ele, as terras recém-descobertas (ou por descobrir, nas quais se incluía o território brasileiro) passavam a pertencer ou à Espanha ou a Portugal.

            O meridiano definido pelo Tratado situava-se, de polo a polo, a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Assim, a maior parte do território brasileiro pertenceria à Espanha, a quem cabiam as terras a oeste desse meridiano, o qual, no entendimento de Portugal, passava por Belém do Pará e Laguna, em Santa Catarina, cabendo a esse país as terras a leste daquela linha imaginária.  Todavia o ponto meridional extremo era incerto: para os espanhóis ele não se localizava em Laguna e sim em Iguape, no litoral sul de São Paulo. Neste caso, todo o território do atual Estado do Paraná seria espanhol. Pelo critério anterior, só não seria espanhol o nosso litoral,  até a Serra do Mar 28

            Ao longo do tempo, em consequência da ação dos bandeirantes (que aqui provocaram o desaparecimento das reduções jesuíticas e vilas espanholas) e ao “uti possidetis”, ignorou-se o meridiano de Tordesilhas e se conquistou para Portugal o território hoje brasileiro (e paranaense). Essa situação de fato foi reconhecida juridicamente pelos tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777).



2 Lacouture, Jean-  “Os jesuítas”- v.1- Os conquistadores. Porto Alegre: L&PM, 1994- p.432
3 Vasconsellos, Victor Natalício--  “Lecciones de Historia Paraguaya”- 6a ed.- Asunción: Ed. do Autor, 1970- p.11. Cf mapas nas pp.12 e 19. Ver também mapa em “Ser Índio Hoje” de Katsue Hamada e Zenun e Valeria Maria Alves Adissi. São Paulo: Ed. Loyola, 1998- p.82
4 Vasconsellos, Victor Natalicio-- “Lecciones ...”, op cit, p. 13-14
5 Id., ibid, p. 14; cario=carijó (cf Martins, Romário- “História do Paraná- 3a. ed- Curitiba: Editora Guaíra, s/d.- p.36; o mesmo autor, na p. 37, afirma que os chiripá  habitavam a “zona que se estende da margem direita do rio Paraná à foz do Piquiri e ao Iguaçu, na altura correspondente à foz do Santo Antonio”)  
6 Cf. entrevista de Rafael Eladio Velazquez in “República Guarani”, de Sílvio Back- 2a ed.- Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982- p. 80 e 85.
7 Lugon, Clóvis--  “A República 'Comunista' Cristã dos Guaranis: 1610-1768”- 3a.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977-p. 24
8 Citada por Maria Inês Ladeira- “Terra em movimento: a luta do povo guarani” in “História Viva” ano IV, nº 40, p.80-85
9  Ribeiro, Berta- “O Índio na História do Brasil”- 9a ed- S.Paulo: Global Ed., 2000,  p.58-59
10  Lugon, Clóvis- “A República...”, op cit, p. 213, nota
11 Id., ibid., p. 25
12 Enciclopédia  Abril, 2a. ed- S.Paulo: Ed. Abril, 1976- v.12 (verbete “Tupi-Guarani”)- p. 204
13  Lugon, Clóvis- “A República...”, op cit, p.213
14 Enciclopédia Mirador Internacional. São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda, 1987-  v.11, p.5531 (verbete “Guarani”, a cargo de Moacir Werneck de Castro e Antônio Houaiss)
15 Ribeiro, Berta- “O Índio ..., op cit, p. 30. Quanto ao Brasil, Darcy Ribeiro afirma que tribos do tronco tupi, na época do descobrimento, “Somavam, talvez, 1 milhão de índios, divididos em dezenas de grupos tribais, cada um deles compreendendo um conglomerado de várias aldeias de trezentos a 2 mil habitantes” (Ribeiro, Darcy- “O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”. S.Paulo: Companhia das Letras (Companhia de Bolso), 2006- p. 28)
16 Id., ibid., p. 31
17 Lacouture, Jean-  “Os Jesuítas”, op cit, p. 453
18 Ribeiro, Darcy- “O Povo...”, op cit, p. 28
19 Lacouture, Jean-  “Os Jesuítas”, op cit, p. 433
20 Cf. citação do Pe. Fernão Cardim in Ribeiro, Berta-- “O Índio ..., op cit, p. 45. Mais adiante, nesta monografia, transcrevo a definição que o padre Montoya dá de “redução”. Ele afirma aí que nas aldeias os índios viviam em três, quatro ou seis casas apenas. Se cem ou duzentas pessoas viviam em cada casa, a população das aldeias podia variar de trezentas a mil e duzentas pessoas. Há pouco vimos que Pierre Clastres considera 600 (ou mais) o número médio de habitantes por aldeia.
21  Lugon, Clóvis- “A República..”, op cit, p. 201
22 Benitez, Luiz G.- “Manual de Historia Paraguaya”-Asunción: Imprenta Comuneros S.R.L., s/d.- p.13
23 Ladeira, Maria Inês- “Terra em movimento: a luta do povo guarani” in “História Viva” ano IV, nº 40, p.80-85
24 Lacouture, Jean-  “Os jesuítas”, op cit, p. 433-434
25 Michaele, Faris Antonio S.- “Presença do Índio no Paraná”, p.11-69, in “História do Paraná”- 2a ed, Curitiba: Grafipar, 1969
26  Martins, Romário-  “História ...”, op cit, p. 108
27 Ribeiro, Darcy- “O Povo...”, op cit, p. 26
28  Martins, Romário-  “História...”, op cit, p.54

3. O PARANÁ ESPANHOL

Como os espanhóis iniciaram a ocupação da região

            Apresento a seguir uma síntese da evolução histórica da conquista e  princípios da colonização pelos espanhóis do continente sul-americano, em sua parte meridional e oriental, até a ocupação do Guairá, no primeiro século após a descoberta da América. 

            Por que me concentrar nessa região e não em outras, uma  vez que os espanhóis estavam, nessa época, explorando a América em  várias frentes, nas Antilhas, no México, na Flórida, na costa sul-americana do Pacífico? A razão decorre, naturalmente, do interesse principal desta monografia, que é, como já foi dito, a compreensão da realidade da chamada província do Guairá, ou do “Paraná espanhol.”

            Enquanto os fatos a seguir descritos, de iniciativa espanhola, ocorriam, os portugueses ocupavam progressivamente o litoral brasileiro, iniciando pela fundação da primeira vila, S. Vicente, em 1532, e estendendo-se daí para o norte e para o sul, mas sem ocupar, no século XVI, o extremo-sul, vale dizer o litoral abaixo de Cananéia. A vila de Paranaguá só será fundada em 1648 e a do Desterro, em 1675.  Apenas em 1680 os portugueses vão fundar a Colônia do Sacramento, na margem norte do Prata, logo arrasada pelos espanhóis. Depois eles a reconquistarão, iniciando um  conflito permanente entre as duas potências ibéricas que só acabará com os tratados de Madri e Santo Ildefonso já  referidos. É bom lembrar também, para nos situarmos historicamente, que em 1534 o rei de Portugal dividira em capitanias hereditárias todo o território a leste do meridiano de Tordesilhas, que lhe coubera pelo respectivo Tratado. A parte do território hoje pertencente ao Estado do Paraná integrava as capitanias mais meridionais, a de S. Vicente e a de Santo Amaro, doadas respectivamente a Martim Afonso de Souza e Pero Lopes de Souza.

            A conquista espanhola do Novo Mundo inicia pelas ilhas do mar das Antilhas, pois foi numa delas-- a ilha de San Salvador, pertencente ao arquipélago das Bahamas 29 -- que Colombo aportou em 1492, fato que assinala o descobrimento da América. E prossegue, estendendo-se para as regiões do Golfo do México e para as áreas setentrionais da América do Sul.

            Depois que Vasco Nuñes Balboa, em 1513, encontrou passagem no istmo do Panamá e descobriu um outro oceano, o Pacífico-- chamado então “mar do Sul” em contraposição ao “mar do Norte”, o Atlântico-- os espanhóis seriam impelidos a explorar a costa sul americana do Pacífico,  investindo  contra  o  império  inca  ali  existente,   no   atual   território    do   Peru   (sua    capital,    Cusco,   fora    fundada em 1021, segundo uns, ou 1150, segundo outros, bem antes da descoberta da América, portanto) 30. Também o território do Chile seria conquistado, sendo concedidas tais áreas a Francisco Pizarro e Diego de Almagro, respectivamente.  Mas, dada a rivalidade que havia entre os dois povos ibéricos, a costa do Atlântico não seria deixada livremente para os portugueses. E assim Juan Díaz de Solis, a serviço da Espanha, explora o litoral sul  do continente e descobre em 1516 o Rio da Prata, que seria chamado de “Mar Dulce”.

            Nessa época o maior interesse dos espanhóis-- e também dos portugueses --era encontrar um caminho alternativo para as Índias, de onde provinham especiarias muito requisitadas pelo ocidente, objeto de um rico comércio (o caminho tradicional, por via terrestre, apresentava excesso de intermediários e alto custo 31). Enquanto os portugueses buscavam contornar a costa da África para chegar às Índias pelo oriente-- resultando disso as suas heróicas “grandes navegações”-- os espanhóis visavam o mesmo objetivo, mas pelo ocidente, que redundou no apoio da coroa ao projeto de Colombo e consequente descobrimento da América.

            Assim, a  motivação espanhola para a expedição de Solis, após a descoberta do Pacífico por Balboa, só podia ser avaliar a extensão do continente sul americano e descobrir uma passagem entre sua costa do Atlântico e a do Pacífico para se chegar às Índias navegando pelo ocidente. Tal passagem seria afinal descoberta, em 1520, por Fernão de Magalhães,  um português a serviço da Espanha. Ele descobriu o estreito que leva hoje o seu nome. A viagem de Magalhães, completada por Sebastián del Cano, representa a primeira circunavegação do globo.



29 Coe, Michael et al.- “Antigas Américas: Mosaico de Culturas”- Madrid: Edições del Prado, 1997- v. II, p. 160.
30 Mattoso, Antônio G.-- “Compêndio de História da América”- 2a ed- São Paulo: Ed. Melhoramentos, s/d.- p. 94
31 Caldeira, Jorge et al.-- “Viagem pela História do Brasil”. São Paulo: Companhia das Letras, 1997- p. 19-20

A proeza de Aleixo Garcia



Caminho do Peabiru
 (extraído de http://www.gilsoncamargo.com.br/blog/?p=729)
         

                   Após Solis ser morto pelos índios charrua ou guarani 32, na região do Prata, os três navios de sua expedição iniciam a viagem de regresso à Espanha, mas um deles naufraga na costa brasileira, próximo à ilha de Santa Catarina. Parte da  tripulação  se  salva, inclusive Aleixo Garcia, português, “natural de Alentejo”, que viverá durante vários anos  nessa   ilha,   chamada   então   de Yurú-minrín, com os carijó  (índios “cario”, para os espanhóis), onde aprende  o  guarani,  “la  lengua  geral  hablada  en uma vasta zona del continente”, conforme  Chaves 33 . Os índios lhe informam sobre a existência de ouro e prata no interior do continente. Em 1524, ele, acompanhado de três companheiros (Alejo Ledesma, o “mulato” Pacheco e outro “cristão”) e um exército de índios guarani 34, parte daquela ilha, certamente atravessando o território paranaense e seguindo pelos caminhos pré-colombianos de Peabiru que os índios lhe ensinam. Transposto o rio Paraná, descobre a região do Paraguai atual e chega às encostas dos Andes.  Garcia consegue chegar até os domínios do império inca, sendo o primeiro a fazer isso, seis anos antes de Pizarro. Em sua jornada avançara cerca de 600 léguas para dentro do continente (das quais 300 corresponderam ao trajeto de Santa Catarina a Assunção). Depois de acumular muitos objetos de metal precioso (vasos, baixela etc), decide regressar para buscar reforços. Envia emissários com amostras de metal à ilha de Yurú-minrín. Cruzando o rio Paraguai, aguarda, a 50 léguas ao norte de Assunção,  o auxílio de seus amigos da ilha, que não chega. E é morto ali ou pelos paiaguá, que lhe roubam as peças valiosas que trazia, ou pelos próprios guarani que o acompanharam naquela jornada. Esta última é a opinião de Ruy Díaz de Guzmán. Afirma ainda Julio Cesar Chaves, fonte das informações anteriores: “Y así acabó en 1525-- comenta Domínguez –el descubridor del Paraguay y de Charcas, el primero que se internó en la tierra de los mbayaes y penetró en los dominios del Inca, terminando su carrera cuando Pizarro no empezaba todavía la suya en el Perú 35

            Em 1526 Sebastián Caboto é encarregado pela coroa espanhola de reproduzir a viagem de Magalhães, e chegar às Índias pelo ocidente. Mas tendo notícias da jornada de Aleixo Garcia, muda de rota e resolve adentrar o continente pelo Rio da Prata em busca dos famosos metais preciosos sobre os quais se comentava. Na margem direita do rio Paraná funda, em 1527, o primeiro estabelecimento europeu na região, o forte “Sancti Spiritu” (nas proximidades da atual cidade de Santa Fé, na Argentina). Não consegue chegar até onde chegou Garcia. Retornando à Espanha em 1530 é desterrado, por não ter cumprido a determinação real 36.



32 Gadelha, Regina Maria A.F.-- “As Missões Jesuíticas do Itatim: um estudo das estruturas sócio-econômicas coloniais do Paraguai (séculos XVI e XVII)”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 85, nota 66).  Bernand e Gruzinski afirmam que Solis “foi morto por índios guarani nas margens do Uruguai e provavelmente devorado” (Bernand, Carmen e Gruzinski, Serge-- “História do Novo Mundo”- 2a. ed- S. Paulo: Editora da Universidade de S.Paulo, 2001-p.627). 
33 Chaves, Julio César-- “Descubrimiento y Conquista del Rio de la Plata y el Paraguay” (v. 1 de la Historia General del Paraguay). Asunción: Ediciones Nizza, 1968- p.38
34 Vasconsellos, Victor Natalicio-- “Lecciones...”, op cit, p. 31 e 34-35; Cabeza de Vaca-- “Naufrágios e Comentários”. Porto Alegre: L&PM, 1999- p.315 e 318 (notas); Chaves, Julio Cesar-- “Descubrimiento...”, op cit, p. 39 e 42. Sobre o sistema de caminhos do Peabiru, ver Chmyz, Igor- “Arqueologia e história da vila espanhola de Ciudad Real do Guairá in “Cadernos de Arqueologia- ano 1, nº 1, 1976- p. 7-103 ( cf. p.69-70)
35 Chaves, Julio César-- “Descubrimiento...”, op cit, p. 45
36 Vasconsellos, Victor Natalicio-- “Lecciones...”, op cit, p. 33-34; Benitez, Luis G.-- “Manual de Historia Paraguaya”. Asunción: Imprenta Comuneros S.R.L., s/d.-- p.20-22;  Bernand, Carmen e Gruzinski, Serge-- “História...”, op cit, p.599 e 640


O primeiro “adelantado” do Rio da Prata ou Paraguai.

D.Pedro de Mendoza (1487-1537)
                        A viagem de Caboto fornecerá, todavia, à coroa espanhola novas informações sobre a região, assim como outra, realizada com o objetivo explícito da busca daqueles metais, a cargo de Diego Garcia.  Carlos V  decide então  autorizar um “rico e influente” membro de sua corte, D. Pedro de Mendoza, a organizar uma grande expedição, composta de 14 navios e mais de 1300 tripulantes, que parte para o Novo Mundo em 1535 37. Mendoza é nomeado formalmente por aquele poderoso rei da Espanha (e imperador do Sacro Império Romano) “Adelantado do Rio da Prata” (o “adelantado” na América era a primeira autoridade política e administrativa; na Espanha do passado recebia esse título o nobre encarregado de expulsar o invasor árabe do território espanhol: o Rei lhe “adiantava” o governo daquela porção do território que seria resgatada) 38.  A abrangência das terras concedidas a esse Adelantado era vasta, ocupando boa parte da América do Sul, abaixo da linha do equador, excluindo-se a área do Brasil (a leste do meridiano de Tordesilhas), as governadas por Pizarro e Almagro, a oeste, na costa do Pacífico, e a Província del Estrecho, ao sul 39.  Após 1569, delas deveriam ser deduzidas também as concessões a Pedro de Silva (oeste da Venezuela e parte da Colômbia) e Diego de Serpa (Guaianas, leste venezuelano). As terras concedidas a D. Pedro de Mendoza são as que se designariam depois por “Província Gigante del Río de la Plata o Paraguay”, com uma área  vinte vezes maior que a do Paraguai atual 40. Nelas estava incluída boa parte do atual território brasileiro, inclusive o território hoje paranaense que logo seria conhecido como do Guairá (v. mapa nº 1).



                                                


            Nosso território estava incluído na região compreendida entre os paralelos de 25º e 36º de latitude sul (vale dizer, de Cananéia ao Rio da Prata) que D. Pedro de Mendoza fora autorizado a “conquistar e povoar” pela Capitulação celebrada em 1534 entre o imperador Carlos V e ele próprio, como afirmam Westphalen, Cecília Maria e Balhana, Altiva Pilatti em  “Presença Espanhola no Paraná- séculos XVI e XVII” (op cit, p. 377).

            Na margem inferior do Rio da Prata, Mendoza manda construir o forte de Santa Maria de Buenos Aires, em 1536 (“simples aglomerado de cabanas, cobertas de palha”) 41. Juan  de  Ayolas   é   encarregado   por  ele   de  comandar  expedição para encontrar um caminho ao Alto Peru. Sobe o rio Paraná e depois o Paraguai, seu afluente, encontrando um porto natural, que é batizado de Candelária. Aí deixa Domingo Martínez de Irala no comando de 30 homens, aguardando-o, e ruma para as “sierras de la Plata” internando-se no Chaco, do qual  não mais voltará (ele juntamente com outros espanhóis e os índios que o acompanhavam caíram vítimas dos paiaguá, inimigos dos guarani) 42. Como os meses passassem, e não recebesse notícias dele, Mendoza manda Juan Salazar de Espinosa em busca de Ayolas, mas ele só encontra Irala, ainda o aguardando. Após reparos em seus dois navios num porto mais ao sul, Irala regressa para o local anterior e continua aguardando Ayolas, enquanto Salazar desce o rio Paraguai e perto da confluência deste com o Pilcomayo funda o forte que daria origem à cidade de Assunção (1537). D. Pedro de Mendoza, doente, ao retornar à Espanha designa Juan de Ayolas seu substituto no governo da região. Com o desaparecimento deste, Irala impõe-se como seu líder pela vontade dos habitantes (havia uma “Cédula Real” que previa a eleição popular do governador naquelas circunstâncias), assumindo o governo em 1539 43. Dada a hostilidade dos índios querandi 44, Irala manda despovoar Buenos Aires, concentrando a população em Assunção, que considerava mais estratégica e situada no limite ocidental extremo da região dos índios guarani, seus aliados. Consolida-se assim a posição de Assunção como sede do governo de todo aquele “Paraguay Gigante de las Indias”, tal como consta na designação do segundo “adelantado”,  D. Alvar Nuñes Cabeza de Vaca, nomeado pelo Rei da Espanha 45 (a expressão curiosa incorporada ao seu sobrenome devia ser para ele motivo de orgulho pois lembrava  fato heróico de um de seus antepassados, que assinalara, com o crânio de uma vaca, uma passagem estratégica aos exércitos dos reis de Castela, Aragon e Navarra, o que possibilitou a vitória desses exércitos na batalha de Navas de Tolosa em 1212. Os reis então lhe concederam  “o título de nobreza que mudaria definitivamente o nome da família”) 46


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37 “Aportes de Benjamín Velilla a la Historia del Paraguay“. María Margarita Velilla Talavera (compiladora).  Asunción: Ediciones y Arte S.R.L, 2005- p. 76.  Gadelha cita Ulrico Schmidl, soldado alemão participante da expedição, segundo o qual esta “se compunha de 14 embarcações, conduzindo 72 cavalos e éguas, 2500 espanhóis e 150 indivíduos de origem alemã, saxônica e flamenga” (Gadelha, Regina Maria A.F.-- “As missões...”, op cit, pp. 88 e 124, notas 84 e 41, respectivamente).  De acordo com o “Dicionário Histórico-Biográfico do Estado do Paraná”, Schmidl bem mais tarde, em 1553, percorrerá a pé o trajeto de Assunção a São Vicente (SP), seguindo o sistema de caminhos do Peabiru. Dessa viagem deixou um relato, publicado em Nuremberg em 1599 (“Dicionário Histórico-Biográfico do Estado do Paraná”. Curitiba: Chain/Banco do Estado do Paraná, 1991-p.54 e 261-262). Atravessa  assim o território paranaense de oeste a leste, num sentido inverso ao da viagem de  Cabeza de Vaca em 1541-1542, a qual será abordada no próximo tópico deste trabalho.  Antes de Schmidl, Cristobal de Saavedra, em 1551 e Hernando de Salazar, em 1552, também “percorreram os caminhos indígenas do Paraná”. Em 1554, Ruy Díaz Melgarejo fez a viagem de Assunção ao litoral paulista, e no ano seguinte, do litoral catarinense a Assunção (cf  Westphalen, Cecília Maria e Balhana, Altiva Pilatti--  “Presença Espanhola no Paraná- séculos XVI e XVII”, p. 375-384, in “Un Mazzolino de Fiori”, v. III- Curitiba: Imprensa Oficial; Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, 2003- p. 378).  Cristobal de Saavedra e Hernando de Salazar viajaram por terra da costa de Santa Catarina até Assunção, para pedir o apoio de Irala à expedição (da qual faziam parte) de D. Mencia de Sanabria, viúva do terceiro “adelantado” nomeado, Juan de Sanabria (falecido antes de embarcar para o Novo Mundo), que até ali tinha chegado. Após tentativa de se estabelecer em S.Francisco, daí partiu, também viajando para Assunção pelo sistema de caminhos de Peabiru, em 1556, acompanhada de um certo número de homens e de “pelo menos 30 mulheres e crianças”, inclusive de  seu genro, o cap. Hernando de Trejo, considerado fundador de S.Francisco (v. adiante) o qual,  aliás, foi preso logo depois da chegada por ter abandonado essa colônia. D. Mencia, que  foi avó do governador Hernandarias, ainda viveria por muitos anos em Assunção  (cf Soares, Olavo-- “Uma mulher no caminho do Peabiru: história de Doña Mencía Calderón de Sanabria”. Curitiba: Editora do Chain, 2007- p. 39-50).
38 Vasconsellos, Victor Natalicio-- “Lecciones...”, op cit, p. 42
39  Id., ibid., p. 42
40 “Aportes de Benjamín Velilla...”- op cit, p.59 e 77.  
41 Vasconsellos, Victor Natalicio-- “Lecciones...”, op cit, p. 42; Mattoso, Antônio G.-- “Compêndio...”, op cit, p. 100
42 Vasconsellos, Victor Natalicio-- “Lecciones...”, op cit, p. 42-45;  Cabeza de Vaca-- op cit, p. 152 e nota na p.315; Gadelha, Regina Maria A.F.-- “As missões...”, op cit, p. 74 
43 Vasconsellos, Victor Natalicio-- “Lecciones...”, op cit, p. 44; Benitez, Luis G.-- “Manual de Historia...”, op cit, p.26
44 Gadelha inclui em sua obra citação de Ulrico Schmidl em que este afirma que os querandi a princípio receberam bem os espanhóis, trazendo-lhes diariamente pescado e carne. Mas depois, acrescenta a autora, “Quando se esgotaram os mantimentos dos índios e estes se recusaram a continuar alimentando os espanhóis, foram atacados pelos conquistadores que tencionavam torná-los seus escravos. Porém, os querandi resistiram pelas armas, fugindo em seguida. Esta prática de se aproximarem dos índios, consumirem seus mantimentos que compravam ou arrebatavam pela força, procurando em seguida escravizá-los, foi regra comum seguida pelos espanhóis.” (Gadelha, Regina Maria A.F.-- “As missões...”, op cit, p.73)
45 “Aportes de Benjamín Velilla...”, op cit, p. 59 e 77
46 Cabeza de Vaca-- “Naufrágios & Comentários”. Tradução de Jurandir Soares dos Santos. Prefácio de Henry Miller. Introdução por Eduardo Bueno. Porto Alegre: L& PM, 1999- p.17-18